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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ouro branco



Punhados de algodão formando nuvens ou pedaços de nuvens agarradas nos pequenos arbustos, tudo se confunde no grande tapete verde com arremates azuis, onde parece dar-se o encontro da terra com o céu.
Os pés de algodão enfileirados como soldadinhos em dia de festa formam desenhos geométricos na grande tapeçaria do campo, que mistura a cor branca das maçãs abertas com as flores rosa e com pequeninos botões verdes, que ficarão para a próxima colheita, para formar um cenário bonito para uma abertura de novela.
Os artistas são os catadores de algodão que, alheios a tudo, dão um colorido especial à tela com seus trajes improvisados: calças compridas com camisas de tecido rústico, lenço amarrado na cabeça também coberta com chapéu de palha de abas largas. Um saco grande de juta amarrado na cintura vai sendo arrastado e se torna cada vez mais pesado na medida em que vai sendo enchido com chumaços do algodão macio e de cheiro doce e agradável, o ouro branco.
No carreador[1] são depositados os bornais com a comida trazida de casa na marmita, que já estará fria na hora do rancho (daí o termo boia fria[2]). A moringa de barro, enterrada num buraco para manter a água fresca, fica só com o gargalo de fora.
A moçada cantarola para enfrentar a relva molhada e fria das manhãs e o sol escaldante das tardes do oeste paulista naquele mês de junho. São jovens sonhadores e cheios de saúde. Nada os deixa infelizes. O suor escorre abundante, as mãos feridas doem, mas ninguém se importa, pois todos querem ganhar as apostas: quem termina primeiro a rua[3], quem colhe mais rápido, quem canta melhor... E a tarde chega sem que se perceba.
Agora é só pesar o produto colhido, receber gaita[4] e esperar feliz o retorno na carroceria do grande caminhão. Ninguém se lembra de ter-se levantado às quatro horas da manhã e de que já lá se vão mais de 12 horas na labuta. 
Já é noite. O japonês[5] aposta corrida na estrada de terra vermelha e cheia de buracos e curvas. A poeira impregna todo o corpo e emaranha os cabelos. O corpo moído pelo cansaço e o sonho com um banho morno e uma cama limpa embalam o sono que chega e supera o desconforto dos solavancos do velho caminhão. Acotovelam-se todos para se protegerem do vento forte. O frio intenso corta os lábios e os olhos desprotegidos. Uns dormem, outros fazem piada, outros cantam as músicas caipiras que fazem a trilha sonora de mais um capítulo da novela “Os Boias Frias”[6]. O futuro? Só Deus sabe. Quando a safra acabar, talvez...


[1]Carreador. Caminho mais largo por onde passam as carretas que recolhem as sacas do algodão colhido.
[2])Boia. Comida.
[3]Rua. Espaço entre as fileiras de pés de algodão.
[4]Gaita. Dinheiro, remuneração pelo trabalho.
[5]Japonês. Motorista do caminhão.
[6]Boia fria. Pessoa não assalariada que presta serviço temporariamente e que come a comida fria no próprio local de trabalho.

3 comentários:

  1. Delícia de texto... nos transporta para a situação narrada. Parabéns Gê! Só você para nos proporcionar o prazer desta leitura!

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  2. No comentário acima, o Anônimo é: Solange Sitolin (rsrs)

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  3. obrigada amiga. Suas palavras me incentivam

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