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terça-feira, 19 de julho de 2011

Medo de chuva

Nuvens escuras carregadas fazem um bailado macabro. Folhas e gravetos sobem num redemoinho, em direção à massa negra. Meu coração bate forte, minhas mãos suam. Ajudo a fechar as janelas que batem soltando lascas da madeira rústica.

Coriscos riscam os céus. Parece que vem granizo. As telhas não vão aguentar, é melhor prevenir. Minha mãe nos coloca debaixo da grande mesa de grossa madeira muito limpa. Afinal, é já prática comum utilizá-la como segura guarita nos dias de tempestade. Os estrondos ferem nossos tímpanos. Agarramos-nos uns aos outros, encostando as cabecinhas louras e tapando os ouvidos. Minha mãe joga sal pela janela (três punhadinhos). Acalma a chuva, diz.

Existem muitos casos de mortes de pessoas atingidas por raios, nas chuvas de verão. As casas altas, nos terrenos descampados das regiões pouco habitadas facilitam a natureza. De repente, minha mãe se lembra daquela trança bonita que o papai fazia com folhas de palmeira, bentas pelo padre no Domingo de Ramos. Eram próprias para essas ocasiões. Era só queimar. E rezar, é claro. Eu rezo.

A tempestade continua. O vento é forte, respingos entram pelas frestas formadas entres as tábuas largas da parede. Aguardamos cheios de medo. Quando tempo? Não sei, parece uma eternidade... Que, de repente, tem fim.

Saímos dali agarradinhos, fazemos o sinal da cruz e agradecemos. Vamos para o quintal para ver os estragos. Que até não foram muitos, desta vez: apenas um galho do majestoso pau-d’alho que não aguentou o baque.

Provavelmente um raio, isso não fiquei sabendo.


Mulher nota dez


            Apesar dos festejos momescos, hoje, oito de março, a mídia abriu espaço para homenagear a mulher, principalmente a brasileira, neste dia que lhe é internacionalmente dedicado. E eu fiquei pensando em quantas e quais foram as mulheres que influenciaram minha vida de uma maneira ou de outra.
São inúmeras: parentes, amigas, companheiras de trabalho e de viagens... Entre elas, ninguém foi mais importante na minha vida do que DONA PINA, minha mãe.

Apesar de sua curta trajetória por esta vida sofrida, deixou rastros de luz com seu exemplo de mulher forte, guerreira, determinada e extremamente corajosa.
Para mim, falar de dona Pina não é fácil, e às vezes sou traída pela memória, pois o breve período em que estivemos juntas foi conturbado por um misto de dificuldades mil e dores atrozes.
Josefina Piveta Bizzo casou-se jovem na zona rural. Filha de imigrantes italianos era dona de olhos verdes muito bonitos. De corpo esguio, sua pele era branca e lisinha, sem nenhuma mancha. Não foi alfabetizada, mas era dona de uma sabedoria ímpar e uma inteligência brilhante.

Sem ter ido à escola, aprendeu a costurar (tirava os moldes por meio de medidas em outras peças), bordava, fazia trabalhos em sacos de panos desfiados, verdadeiras obra de arte. Dos trabalhos domésticos, nem se fala. Fogão de lenha, água retirada de poço, quintais de terra, seis filhos e, ainda, lavava e passava roupas para fora, para ajudar na receita da casa. Uma heroína. Vida difícil, parcos recursos, marido genioso e ela comandava tudo com mestria.
Os filhos, uma “escadinha” de seis degraus, se ajudavam mutuamente, colaborando desde cedo nos afazeres domésticos e, sozinhos, cuidando da própria higiene pessoal e das tarefas escolares, mesmo porque além do tempo de que não dispunha, ela não saberia como fazê-lo.

Mas quando o assunto era higiene, ela era rigorosíssima, tanto nas roupas da casa como nos utensílios e nos toscos móveis, se é que podemos chamar de móveis aquelas poucas mobílias, feita de forma artesanal pelo meu pai carpinteiro.
O chão de tijolos à vista tinha que estar branquinho, nem que para isso tivéssemos que retirar o excesso de reboco com uma espátula. Nossas roupas eram muito pobres, mas sempre muito bem lavadas, remendadas e passadas a ferro de brasa. Nossa higiene pessoal era fiscalizada constantemente: unhas, cabelos e pés – que a terra vermelha encardia – eram limpos com a mesma escova usada para esfregar as roupas, cujos fios pareciam espinhos.
Ela era muito brava e, muitas vezes, esquentava nossas bundas com palmadas ou varinha de algum arbusto. Não podíamos correr dos castigos e muito menos levantar a voz. Ficar com raiva, nem pensar, brigas entre irmãos não eram permitidas. Nossa educação foi rígida. Para entendermos o que ela queria, bastava um olhar.  
De saúde frágil, sob os cuidados médicos possíveis em uma época em que não havia convênios, não esmorecia; era uma leoa na defesa dos filhos, mesmo quando as forças lhe faltavam.
Fiquei pensando e, triste, me lembrei de que não me lembrava de um aconchego maior, de um carinho especial no toque, no abraço, no carinho que toda pessoa sente falta, principalmente as crianças. Eu a amava e sei da paixão que ela nutria pelos filhos, mas eu não entendia sua rigidez. Sempre muito ocupada e exigente, era também muito severa. Muitas vezes chorei, lamentando por não poder conversar com ela sobre minhas dúvidas, meus anseios, e muitas vezes culpei-a por ter-me feito ajudá-la muito com os trabalhos da casa e com o cuidar de meus irmãos, enfim, por eu não poder viver a plenitude de minha adolescência, como minhas colegas e vizinhas.
Hoje vejo como minha avaliação foi equivocada. Viajei no tempo e a colcha de retalhos foi-se formando com pedaços, uns mais escuros e sombrios, outros muito coloridos e floridos. Como posso falar de falta de carinho se, quando adoecíamos, ela só faltava morrer de aflição, tal era seu desvelo?
Lembro-me de quando a Evanir teve uma crise de apendicite aguda e foi submetida a uma cirurgia de emergência: minha mãe se debulhou em lágrimas, como se aquela internação fosse o fim do mundo.
Lembro-me também de como cuidadosamente curava, com chás de ervas, banhos e emplastos caseiros, os inúmeros ferimentos nos meus pés escalavrados pela ação de espinhos e cacos de vidro (até hoje sou estabanada). E de sua dedicação e carinho quando o Agenor teve os pés queimados com cinzas quentes: para aliviar a dor, derretia velas para fazer pomadas que aliviassem as dores horríveis. Quantos dias e noites foram necessários para curar esse ferimento. Lembro-me ainda do mesmo carinho, ou melhor, do carinho redobrado em função da pouca idade do Nestor, quando queimou os dedinhos nas brasas retiradas do forno. Carinho somado ao desespero da culpa por não ter evitado o acidente.
Meu Deus! Como me lembro daquela tromba d’água, que desabou justo na noite em que o Antenor teve uma pneumonia. Lembro-me de ela tê-lo curado com cataplasmas feitos com fubá cozido e remédios receitados por um farmacêutico da cidade. Morando longe, sem meio de transporte, como socorrer não fosse o amor e a intuição de mãe?
Com a Nair, então, nem se fala. A pequenina sofria de bronquite asmática e era tratada como um bibelô. Não tomava banho frio, não tomava sorvete, não tomava vento... Mesmo com todos esses cuidados, as crises eram cruéis e frequentes, para o desespero da Dona Pina. Noites insones com a filha no colo nos momentos de crise. E dá-lhe chás, promessas, simpatias.
Se isso não era carinho, o que era então? Na dor de um filho, ela se transformava. Eu, na minha inocência, até inventava uma dor ou outra, só para chamar sua atenção.
Seu carinho era também demonstrado no alimento muito bem preparado. Que delícia de feijão! E a macarronada, então? Matava galinha e dissecava porco com rapidez e mestria. Mesa posta muito simples, mas sentávamos todos juntos para as refeições, mãos limpas e cabelos penteados. Não eram permitidas conversas à mesa; brincadeiras, então, nem pensar. Bem, essas exigências eram mais de meu pai, mas ela as acatava totalmente.
Sinto ainda o gosto do pudim de queijo feito em “banho maria” na panela de ferro, sobre a qual colocava uma tampa de lata cheia de brasas acesas. O anisete – licor de aniz – verdinho que ela fazia e servia para os mais velhos. Vale lembrar que essas regalias só existiam no Natal e na Páscoa. E a pinga queimada então? Era assim: Nos raros dias de frio, ela colocava um prato fundo no centro da mesa. Despejava uma porção generosa de aguardente e ateava fogo. Nós ficávamos lá, em volta da mesa, observando o fogo azulado até que sua língua bruxuleante se apagasse naturalmente. Ficava ao fundo somente o melado da cana que tomávamos satisfeitos, e que nos aquecia.
Quantas lembranças daquelas raras vezes em que ela estourava pipoca, fazendo muito barulho com a panela, o que provocava em nós muito riso, para depois “viajarmos” na imaginação, descrevendo cada grão estourado como bichos, objetos, flores. E assim passávamos as horas.
Herdamos dela o gosto de cantar. Dona de uma voz lindíssima e afinada, cantarolava sempre envolvida com os afazeres domésticos. Fazia isso para aliviar o estresse, eu acho. Lembro-me perfeitamente... ”Fiz a cama na varanda e me esqueci do cobertor...” “Quando alegre partiste, tu me deste uma rosa...” e tantas outras de Carlos Galhardo, Vicente Celestino. Me pego a pensar: Como sabia a letra dessas canções, se não tínhamos rádio? Acho que aprendia com meu pai, que era músico.
Dona Pina, mulher nota dez. Inteligente, sábia, enérgica, batalhadora e, para completar a lista das virtudes, muito caridosa.
Não bastasse o zelo com os seus, ainda achava tempo para ajudar os parentes e a vizinhança, principalmente quando nascia uma criança, o que não era raro. Fazia curativos, dava banho nos bebês e ainda auxiliava na lavagem das roupas e na providência de caldos quentes. Vale lembrar que os partos eram feitos em casa e lá estava ela, sempre presente.
Tenho registrado em minha memória o tratamento do primo Venâncio, que desde o nascimento tinha problemas nas vistas. Nascido na zona rural, filho de sitiantes muito simples e sem iniciativa, a família apelou para minha mãe, que o acompanhou até Campinas, naquela época famosa em função dos hospitais oftalmológicos. Imagino na década de 1950, com as condições de transporte e comunicação precárias, a disposição dessa mulher – analfabeta, lembre-se – ao enfrentar uma empreitada dessas.
Não ficou por aí. A mulher guerreira não tinha medo de nada. Conversava com todo mundo e resolvia problemas. Tenho nítidas na memória as visitas para o Sr. Borges, diretor do grupo escolar, para que seus filhos não ficassem sem escola. Eram poucas as vagas oferecidas às crianças a partir dos oito anos, mas nós tínhamos garantidos nossos direitos graças à sua insistência. Ela não sabia ler, mas seus filhos aprenderiam com certeza.
Bem, falar de minha mãe daria um livro enorme, mas sem final feliz. Muito jovem, aos 34 anos foi acometida de um câncer que a consumiu aos poucos. Faleceu três anos depois. No período de tratamento, ineficaz e de muito sofrimento, insistia sempre na união da família, quando pedia a meu pai e a nós mais velhas (Vani e eu) para que nunca desanimássemos e não nos afastássemos uns dos outros.
E foi assim que permanecemos muito unidos. Mesmo quando cada um foi para um lado por motivos diversos, sempre nos comunicamos e não medimos esforços para estar juntos e, até hoje, nossos encontros são sempre muito prazerosos.
Somente um desgarrou-se do rebanho: o Antenor, que muito cedo se afastou de nós, mas por um justo motivo: queria encontrar-se com ela. Eu acho que juntos no plano espiritual eles dão muitas risadas de nossas trapalhadas.
— Querida dona Pina. Queria ter herdado da senhora, além dos olhos, essa coragem de enfrentar situações adversas, pois às vezes tenho um pouco de medo. Apesar de que, quando o medo e a insegurança aparecem, sinto sua presença constante como a me dizer: Isso também vai passar e eu estou aqui para ampará-la.
Desculpe a demora em lhe fazer essa homenagem, mas sei que o tempo para a senhora aí nesse plano corre diferente.
Abrace o Antenor por mim.
Beijos
Geni 08/03/2011 

Flor preferida de dona Pina

Uma dor só minha

Eu me lembro da dor doída e do gosto amargo da decepção, quando um tsunami entrou Rua Carlos Gomes adentro, atingindo a praça arrastando tudo. Os balões de gás coloridos se enroscavam nas altas árvores frondosas. As bandeirolas verde-amarelas arrancadas das mãos das crianças voavam, e todos os sonhos guardados para esse dia em especial foram-se desmanchando. Era assim que me sentia naquele dia fatídico.

Eu me lembro...
Praça Rui Barbosa apinhada de gente naquela linda manhã de setembro. O sol saía das entranhas da terra com seu brilho morno, prenunciando a primavera e ressaltando ainda mais o colorido das crianças que pulavam ao redor do coreto enquanto aguardavam a festa. Vendedores de uniforme e boné se esmeravam para atender os pequerruchos. Balões de gás, bandeirolas do Brasil, é claro, algodão-doce, sorvete, pipoca, pé de moleque. Os pais atendiam como podiam, mas com muito gosto, por participarem de um evento raro na provinciana cidade.
De uniforme azul e branco, sapatos pretos e meias soquete, gravata preta, cabelo arrumado, leve maquiagem e um vazio no estômago provocado pelo longo jejum que se misturava à ansiedade, eu, toda faceira, aguardava feliz o início do cortejo.
Minhas colegas de turma e eu havíamos formado, como abelhas operosas, o pelotão de frente, na rua defronte ao colégio. Daí faríamos o trajeto pela rua Carlos Gomes, contornaríamos a praça se seguiríamos no desfile cívico da Independência. Nós, normalistas, estávamos orgulhosas: era nossa a honra de seguir os lindos jovens do Tiro de Guerra que conduziam o Pavilhão Nacional. Na formação privilegiada podíamos observar tudo e trocar olhares, já prenunciando o encontro para o final do compromisso. O tempo se arrastava e uma longa espera já nos preparava para um desfecho cruciante.
Estranhando a demora, enquanto aguardávamos o início cochichávamos, tentando entender o que estava acontecendo. Não podíamos sair da formação: a disciplina era rigorosa, e tudo que não queríamos naquele momento era que alguém nos chamasse a atenção na frente dos pracinhas.
O suor escorria e o penteado já se desmantelava quando, finalmente, veio a triste notícia... Silêncio cósmico. Espanto, um misto de tristeza e angústia tomava conta da multidão. A voz empastada do diretor anunciava o fim do desfile que não começara. Acabávamos de perder, em um trágico acidente, monsenhor Victor Ribeiro Mazzei, nosso pastor de almas durante muitos anos e que agora retornava à cidade para os festejos da Independência. Era, sobretudo um cidadão araçatubense amado por todos, católicos ou não. Não haveria desfile, não haveria festa, não haveria sorvete de coco queimado, não haveria encontros furtivos, não haveria aquele encontro sonhado. Somente dor e desolação.
Eu me lembro...
Dispersamo-nos e nos dirigimos à praça. Ao invés da algazarra da criançada feliz, somente o soar melancólico do enorme sino da Igreja Matriz que se preparava para a cerimônia fúnebre. Minha cabeça girava num misto de fraqueza, dor e revolta.
Eu me lembro da sensação terrível do grito de dor na garganta e hoje tenho a certeza de ter vivido horas no meio de um tsunami. Minha dor maior era de frustração. No meu mundinho interior, bem lá dentro, sentia por não sentir a mesma tristeza de todo mundo. A dor doída era particular, só minha.
01/03/2011
F.T.I. Geni