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terça-feira, 30 de agosto de 2011

Um casamento diferente.


Maristela e Silvio

Amanhecia a segunda-feira dia 5 de outubro de 1969. Eu estava acordada desde a madrugada, na expectativa da chegada do ilustre casal, em retorno de uma lua de mel que não houve, tão curto era tempo para tão grandes emoções.  Ao ouvir o leve toque do portão, abri a porta e a vi: uma mulher jovem ainda, pouco mais velha que eu, com uma blusa xadrez verde, calça de cotelê marrom, com olhar desconfiado. Ele, não me lembro da roupa, mas do olhar, também de interrogação diante da situação no mínimo inusitada.
Meu pai – Sílvio – havia se casado com Maristela. E pensar que nós não a conhecíamos dez dias antes. Tampouco ele. Parece um conto de fadas, e talvez seja mesmo, se conhecermos os fatos.
Bem... o começo de tudo.
Maristela, nascida em Senador Pompeu, no Ceará, morava na capital do estado e trabalhava numa confecção na praça Castro Alves, no centro da cidade. Nessa empresa, entre os vários jornais que chegavam de São Paulo, havia o “Notícias Populares”. Uma amiga sua lia  curiosamente os classificados e deparou-se com um anúncio.
O anúncio: senhor viúvo, 54 anos, pedreiro e músico, deseja corresponder-se com moças mais velhas, solteiras, para sérios compromissos.
Incentivada pela amiga (diz ela) enviou a primeira carta em que se mostrava interessada no namoro. Ele recebeu várias outras cartas, todas de moças casadoiras interessadas e que moravam muito mais próximo de Araçatuba. Mas foi ela a escolhida, coisas do destino.
Durante quase um ano e meio trocaram correspondências. Eu recolhia as cartas e as deixava em seu quarto sem jamais perguntar, mesmo porque acho que ele ficaria sem graça. Um dia, enfim, ele resolveu falar-me sobre a namorada, acrescentando que pretendia casar-se novamente. Ao conteúdo das cartas nunca tive acesso, porque uma coisa na minha casa sempre foi muito séria: violar a correspondência do outro era coisa inadmissível, e nem eu queria fazer isso. Nessa época, três dos seus seis filhos já estavam fora, somente Antenor, Nair e eu ainda estávamos com ele.
Quanto ao casamento, dei a maior força. Até porque, como já relatei em outros textos, a morte de minha mãe deixou-me com muitas responsabilidades, e queria sair da cidade, ter minha própria vida, estudar, trabalhar. Entretanto, para que o enlace finalmente acontecesse, foi um fuzuê, como diz Maristela, a começar pelos preparativos. Primeiro, ele não contou a ninguém, exceto aos mais próximos; segundo, o dinheiro era curto e a experiência em viagem era quase nula. Mas ele venceu todas as barreiras, por maiores que elas parecessem.
Com o maior cuidado organizei sua mala com as melhores roupas. Combinamos tudo: ele deveria fazer contato quando lá chegasse e dizer a respeito de nossa preocupação maior: se havia dado certo, pois ambos haviam combinado que qualquer um dois poderia desistir do compromisso se o encontro não fosse legal, se não houvesse “liga”. No dia 28 de setembro, dia do meu aniversário, recebi um telegrama que dizia, além dos cumprimentos pela data: chegarei dia 5, acompanhado. Havia dado liga, portanto.
O encontro: segundo relato dela (meu pai sempre manteve silêncio sobre o assunto), eles se encontraram na praça Castro Alves, num ponto de ônibus. Era hora do almoço e ela até então havia mantido segredo a respeito da chegada dele. Após se acertarem, ele retornou ao hotel para, no dia seguinte, encontrarem-se novamente, já então com a anuência de todos da família.
Hospedou-se na casa dela (um seu irmão foi buscar o noivo no hotel, de mala e cuia) onde oficializou o pedido para a mãe, em presença dos demais familiares. Já na segunda-feira acertaram os papéis do casamento.
Um fato: na segunda-feira, Maristela compareceu ao trabalho para formular o pedido de dispensa do serviço; o noivo foi com a futura sogra, mais um irmão e um tio da noiva, ao Fórum local, onde normalmente acontecem os casamentos com dispensa de proclamas.
Outro fato: a Igreja não aceitou o simples atestado de óbito para comprovar a viuvez. Recusou-se fazer o casamento, a menos que se pudesse verificar a veracidade do documento.
O impasse: católica como era, a família não aceitava  dispensar a cerimônia religiosa. E o tempo era curto.
A saída: simularam um passeio de táxi, visitaram um tio e retornaram “casados” diante de Deus. Era dia 30 de setembro, uma quarta-feira. No dia seguinte, pegaram o ônibus com destino a São Paulo, em seguida, para Araçatuba.
O casamento religioso só aconteceu no dia 14 de outubro, na igrejinha São Benedito, perto de nossa casa. Era uma quarta-feira, onze horas da manhã. Estavam presentes somente meu pai e Maristela (os noivos), Antenor e eu, seus padrinhos. Em um bonito discurso, o padre que realizou a celebração nos disse ter sido aquele o casamento mais bonito que ele havia realizado. O sonho de todos foi concretizado. Mas certamente Deus já havia abençoado a união há muito tempo.
Para ele, o recomeço; para ela, o início de uma vida totalmente diferente da que tivera até então. Longe da família, sem as facilidades dos meios de comunicação e de transporte de hoje.
Quando falamos sobre isso, nos lembramos do quanto ambos foram corajosos, ao darem um passo tão diferente em suas vidas. Adaptação lenta e progressiva de ambas as partes. Todos colaboraram e as arestas foram sendo aparadas. Para Maristela, a saudade de casa era muita e tantas eram as dificuldades, que poucas vezes retornou para visitar a família. O contato era feito por meio das cartas. Ah! As cartas...
Dois meses depois ela engravidou. Ficamos contentes e curtimos muito a chegada de uma criança depois de tanto tempo. Cuidamos do enxoval, éramos três mães: além de Maristela, Nair e eu nos envolvemos com o nascimento de um lindo menino de cabelos loiros encaracolados.
O parto aconteceu a 18 de agosto de 1970. Ainda convalescendo no hospital, Maristela contraiu infecção hospitalar, o que a deixou internada ainda por 40 dias. As inexperientes “mães” assumiram o papel, desajeitadas às voltas com fraldas e mamadeiras durante os quatro primeiros meses pós-parto.
Como “mães”, Nair e eu nos vingamos do “indo”, marca registrada nos nomes da família. Escolhemos Sílvio (como nosso pai) para o registro do garoto. Mas o velho, que sempre gostou de nome composto, registrou-o como Sílvio César Alves Bizzo, para nós, Silvinho. Os padrinhos? Nair e Antenor é claro. A vida continuou, eu fui para a capital e Antenor para Cuiabá. Nair, nos preparativos para o casamento que se avizinhava, trazia sempre a tiracolo o garoto. Esse elo entre os dois, que se mantém firme até hoje, estendeu-se ao Hirata com quem Nair se casou.
Aos 14 anos, Silvinho, por indicação de seu padrinho Antenor, ingressou como menor aprendiz no Banco do Brasil, onde permanece até hoje, depois de aprovado em concurso público. Maristela emprenhou-se muito na formação do filho e, mesmo com as dificuldades de sempre, não mediu esforços para que ele tivesse um ensino melhor. A faculdade ele cursou em Cuiabá, para onde foi transferido a serviço do banco.
Sílvio hoje mora na capital federal, é pai de três lindas filhas: as duas mais velhas do casamento com Kiti, Bárbara e Beatriz e a caçula Giovanna de seu casamento com Tati. A primogênita já cursa faculdade.
Maristela e meu pai continuaram a vida em Araçatuba. Por incentivo dela, ele, após deixar a indústria onde trabalhava, continuou a recolher a contribuição para o INSS, o que lhe valeu uma aposentadoria pequena, mas que lhe garantiu certa tranquilidade.
Durante os 31 anos em que estiveram casados, muitos altos e baixos aconteceram, dificuldades e tropeços, alegrias e vitórias como em qualquer família (coisas que já comentei em outros textos). Durante os anos em que meu pai esteve doente, ela foi muito dedicada, tomando para a si a responsabilidade com os cuidados. Cabiam a nós, seus filhos, o amparo material e o carinho das frequentes visitas.
 Maristela nunca arredou pé de sua condição e do dever de esposa. Analisando hoje, temos a certeza de que o saldo foi muito positivo, mesmo com os muitos “frises”, como dizia a cearense arretada, que aconteciam no convívio com um velho ranzinza. Afinal, tudo deu certo, foi um trabalho lento de construção e paciência. Ela ainda fala com muito orgulho do seu garanhão e de suas qualidades, além dos defeitos, é claro.
Maristela vive hoje em Rio Claro, sozinha em sua casa. Mas não solitária; pelo contrário, engajada que é nos trabalhos da igreja e na ginástica. E convive harmoniosamente com todos da família de seu marido, hoje e mais do que nunca também dela. Livre, leve e solta, viaja sempre para sua terra natal e para a capital federal curtir seu filho e netas. Está com saúde e muito bem fisicamente. Elegante em bem vestida, deixaria meu pai enciumado, possessivo que era o véio Bizzo, segundo ela.
Muitas pessoas me pedem para contar essa história porque, na verdade, é diferente e interessante. Não sei se falei tudo, mas uma coisa é certa: fui fiel ao que ouvi e, principalmente ao que vivi como coadjuvante.     

25-04-2011 Geni



terça-feira, 9 de agosto de 2011

Companheiro fiel

Dia 19 de Junho de 1958. A hora? Não me lembro. De pé, ouvidos atentos embolávam-nos ao redor de pequenina estante acompanhando a voz nervosa do locutor esportivo naquele dia que seria um marco na história do futebol brasileiro. Oito anos depois da derrota histórica no Maracanã quando perdemos para o Uruguai o Brasil apresentava uma nova geração de craques que dominou o cenário mundial do futebol por alguns anos. O mundo se encantava com jogadores como Pelé e Garrincha -principais estrelas- e nós, nos encantamos com os suecos que, embora derrotados, aplaudiram de pé a seleção quando o capitão Bellini recebeu a taça e a colocou sobre a cabeça para que todos pudessem fotografar.
A transmissão era muito ruim com chiados que dificultavam o entendimento, mas nosso personagem principal foi fundamental para que pudéssemos vibrar soltando o grito de campeão sufocado na garganta desde 1950. Estou falando do nosso amigo inseparável que nos atendia sempre embora levasse uns safanões vez em quando para que trabalhasse direito. Um rádio SEMP, tamanho médio que fora adquirido três anos antes para que meu pai pudesse acompanhar o resultado das eleições.
Um apaixonado pela cidade e admirador ferrenho de Joaquim Geraldo Correa candidato a prefeito de Araçatuba em 1955, meu pai acompanhava passo a passo o resultado do pleito. No dia mesmo que fora às urnas, a meia noite colava o ouvido no rádio para ouvir o nome do seu candidato quando da retirada da primeira cédula, da primeira urna. Dizia ele que o primeiro voto computado é que decidiria a eleição. Zizinho (como era carinhosamente chamado) foi eleito e, graças a ele o rádio passou a ser nosso companheiro fiel.
Nessa época a Radio Nacional do Rio de Janeiro vivia seu apogeu e chegava aonde não chegavam a escola nem a imprensa facilitando inclusive a compreensão dos analfabetos. Mesmo nas fazendas mais distantes e isoladas as pessoas podiam acessá-lo graças às baterias ou acumulador e acompanhar a divulgação das músicas “caipiras” que traziam a essência e o romantismo do homem do campo.
A programação da rádio era imensa, mas o forte eram os shows de auditório principalmente comandado por Cesar de Alencar onde desfilavam estrelas como Emilinha Borba, Marlene, Ângela Maria, Ivon Curi, Luiz Gonzaga,Cauby Peixoto e uma constelação imensa que levava os fãs clubes ao delírio e não raro ás brigas na defesa de seus ídolos. As eleições de rei e rainha do rádio eram acompanhadas com muita atenção. Também o grande sucesso da época O Repórter Esso – “Testemunha ocular da história” “O primeiro a dar as últimas” - cuja música tema ecoa em nossos ouvidos até hoje - era programa obrigatório em todos os lares.
Acompanhávamos tudo com muita atenção e aproveitávamos para cantarolar as canções das paradas de sucesso, principalmente as marchinhas de carnaval e as serestas Outro grande fenômeno eram as radio novelas, mas nos eram proibidas, pois segundo meu pai era só choradeira e mau exemplo. Gostávamos e ouvíamos os demais programas quando conseguíamos, pois como já disse as transmissões eram às vezes horríveis e com os chiados perdíamos a metade da apresentação ou a paciência quando então desistíamos. Os Programas como: Consultório sentimental, Jararaca e Ratinho, Seriado “Jerônimo – o herói do sertão” “Edifício Balança, mas não cai” faziam parte de nossa seleção.
Embora a Rádio Nacional fosse a mais famosa ouvíamos também outras emissoras O Programa PRK 30 esse da Radio Mayrink Veiga – era o preferido de meu pai que dava gostosas gargalhadas. Também sintonizávamos a rádio Record - A voz de São Paulo, Difusora, Tupi e tantas outras que se dividiam nas transmissões diretas ou em cadeias. A rádio Bandeirantes - líder no esporte – também transmitia o famoso programa “Na serra da Mantiqueira” com a dupla caipira mais famosa do Brasil – Tonico e Tinoco - Acostumados a ouvir e imaginar nos perdíamos em divagações – casar a voz com seu dono era nosso sonho.As donas de casa cumpriam seus afazeres domésticos sempre com um rádio ligado e o ouvido atento.
As emissoras locais eram também muito ouvidas principalmente durante o dia quando as transmissões de emissoras da Capital se tornavam quase impossíveis. Programas como-“Lembrei-me de Você” onde se oferecia uma música por ocasião de aniversário ou casamento, e a “Ave Maria” às dezoito horas eram sagrados em nossa casa.
Os anos se passaram e o pequeno rádio acompanhava nossa trajetória. Quando surgiram os Movimentos como Jovem Guarda, Tropicalismo, e Festivais da MPB já trabalhávamos e estudávamos à noite e, com os ouvidos colados por causa do baixo volume obrigatório para não acordar os demais, acompanhávamos nossos ídolos não nos importando com a hora tardia e com a obrigação de acordar cedo.
Com o advento da TV acentuado pela revolução de 64 houve o declínio dos Anos de Ouro da Rádio Nacional – conhecida como “Escola do rádio” possibilitando a ampliação de outros canais, e a devoção que se conhecia pelos programas foi transferida para a Televisão embora sem aquele brilho do rádio.
As transmissões pela TV custaram a chegar ao interior, mas mesmo depois de sua chegada nós fomos os últimos a te-la em casa para podermos acompanhar, pelo menos, os vídeos tapes. E durante muito tempo ainda o rádio continuou sendo nosso fiel companheiro mesmo porque não era necessário parar os afazeres para nos entregarmos aos sonhos coisa que a TV exigia.
As muitas histórias que esse amigo nos proporcionou ficaram registradas em nossa memória e descrevê-las seria impossível, mas o maior registro foi com certeza o da importância que ele teve em nossas vidas. Mas como nada é definitivo ele também “passou”.
Que pena! Foi ficando no esquecimento depois que deixamos nossa casa. Soubemos que seu interior foi comido por ratos guardado que estava num quartinho dos fundos. Depois não tivemos mais notícias, mas a lembrança e a saudade, essas ficaram e ficarão para sempre. Geni 2011  FTI
Esse era o nosso rádio

terça-feira, 2 de agosto de 2011

SONHO DE MENINO

Muita força,... Pouca força,... lá vai o trem... Café com pão,... Manteiga não...
O apito soa longe provocado pelo maquinista que, recostado à janelinha, observa os transeuntes à beira do caminho. Ele puxa uma corda soltando o ar comprimido que dá voz ao comboio e, ao mesmo tempo, acena sorridente. _ Leonardo retribui e sonha, sentado à beira do caminho sentindo o cheiro agradável do capim cidreira salpicado de orvalho na fria manhã.
A Maria Fumaça segue engolindo fogo, transpirando _ suor quente da caldeira bem alimentada, soltando fuligem que, muitas vezes, fazem furinhos nas roupas estendidas nos varais ao longo da ferrovia.
Todos os dias Leonardo faz o mesmo trajeto, repete os mesmos movimentos_ senta-se à beira da estrada, entre uma touceira e outra do capim santo (aprendeu que são plantados para evitar a erosão do solo) espera solitário a máquina barulhenta para dar o seu costumeiro adeusinho ao gorducho maquinista.
De cócoras, abraçado aos joelhos para se aquecer o menino observa feliz a aproximação da gigante centopéia que, com os pezinhos enrodilhados sustentam enormes vagões nas costas carregados com mercadorias e passageiros. Os sapatinhos rotos sibilam ao contato com os trilhos, mas, ela agüenta... e segue.
O lourinho menino com franjinhas na testa sonha... Aprendeu na escola que lá pelos anos de 1800 um tal de Barão de Mauá, trouxe para o Brasil  a idéia de ferrovias para facilitar o transporte de mercadorias, principalmente o café, mas para ele esse comboio transporta os seus sonhos, conhecer outras terras..
Silêncio... _ Que susto _ O comprido trem some no horizonte. Os cheiros da fumaça, os trilhos quentes por causa do atrito, saturam o ar com intenso calor, os dormentes e as britas salpicados de graxa, deixam um odor característico e, o coração batendo forte, traz o menino à realidade.. Ele, silencioso, começa recolher os gravetos que o maquinista gorducho atirou (faz isso todos os dias) para fazer arder a fornalha de sua casa. Enquanto a outra fornalha aquece a caldeira que fornece o vapor para movimentar o trem essa aquece o pão que perfumado e quente agasalha o estomago do menino sonhador.
Muita força, pouca força..., café com pão, manteiga não...
O trem passa... O tempo passa... Somente a saudade fica e o menino homem se perde nas doces lembranças...

Geni Bizzo

10-05-2010   FTI





México


familia mexicana

Verbalizar o que sinto por vocês é difícil. As palavras me fogem e posso ser traída pela emoção.
Deixo-me levar pelas lembranças...

1972. Cheguei a Santo André como um pássaro fora do ninho, deixando pra trás toda uma vida de luta e aprendizado. Numa cidade totalmente estranha, fui acolhida por seus pais que, embora recém-casados, não se importaram em “hospedar-me”, reservando para mim um espaço na casa já pequena para o casal e dois filhos. Guardo na memória aquela manhã, quando cheguei e fui recebida por um garotinho lindo, rostinho vermelho (ainda com poucos dentes), sorridente num quadrado em frente à tv (a babá daquela época).

Tantas coisas aconteceram ainda... Foram oito meses de convivência, tempo suficiente para eu me apegar muito a vocês. Compartilhamos inúmeros momentos: uns (poucos) tristes, outros (muitos) felizes. Mudei-me de sua casa, mas continuamos sempre juntos nos finais de semana, nas viagens e nas festas.

Vi você crescer. Acompanhei todos os momentos importantes de sua vida: festa na escola de educação infantil, nas primeiras séries, na primeira comunhão e em todos os aniversários. Quando você completou um ano, eu e seu tio Emilson tomamos um porre. Eu curti ressaca três dias. O Emilson era mais forte...

Várias andanças por distintas cidades vocês fizeram, por conta do trabalho de seu pai. E eu conheci lugares novos por conta disso, pois os visitei em todos.

O tempo passou... Os encontros diminuíram, mas sempre muito intensos.

Formatura!!! Que linda festa. Eu lá, na primeira fila, no gargarejo, tiete de meu sobrinho. No ano seguinte, surge a Laura em sua vida. Que farra fizemos com ela que, entre surpresa e tímida, sorria (como uma lady, verdadeira Lady Laura...). Mais uma festa: o casamento, lindo, marcante. Um outro porre, desta vez mais leve.

A vida continuou. Na faina da busca profissional, mas correria, estudo, trabalho. Nada nunca nos impediu de nos vermos ou falarmos. Chegou o nosso lindinho Enzo para a felicidade geral. Fofinho como o pai. Para completar, chegou Helena. Lady como a mãe.

Sucesso profissional. O Brasil ficou pequeno para vocês. É necessário um vôo mais alto. O México ganha novos habitantes. Diferenciados, diga-se de passagem. Com certeza, essa família linda vai fazer a diferença. Guadalajara não será a mesma.
O que mais posso dizer?

Amo vocês. Que Jesus os  abençoe . Eu estarei sempre presente em pensamento e em prece.
Beijos,  Tia Gê       15-11-2008

Encontro e despedida

Finalmente chegou o tão esperado momento. Luiz está radiante. Adeus escola, livros, discussões, leis, caminhos que se tornaram maiores e mais cheios de obstáculos durante esses trinta anos. Cada palmo de seu chão passa na tela mental como em um flashback. Árvores frondosas e floridas deram lugar aos prédios. Casas antigas foram tombadas – literalmente – para dar lugar a gigantes e imponentes viadutos. A tão sonhada aposentadoria chegou. E, com ela, sentimentos confusos do dever cumprido, cansaço e um vazio enorme com a expectativa de novos dias.

Bem, mas não é momento para saudosismos ou tristezas, mas para comemorações. Meu querido e inseparável amigo Luiz me abraça efusivamente e me pede para escolher um local aconchegante para brindarmos esse momento especial. Não tenho dúvidas. Escolho o Yokohama, restaurante japonês onde tantas vezes estivemos para trocar idéias e fazer confidências.

Mas hoje será diferente. O sentimento de alívio, aliado à saudade que sentiremos, promete uma noite inesquecível. Quero sentir cada segundo. Fechando os olhos, vejo-me estacionando o carro sob a luz das lanternas coloridas que iluminam o jardim entre as pedras que servem de esconderijo para as carpas – parecem-me – gigantes para espaço tão pequeno.

Na chegada, o ar fresco de aroma agradável impregna nossa alma. Ao atravessarmos a pequena ponte em arcos e cercada de bonsais, percebo que o perfume da vegetação verdinha toma conta de mim e me deixo levar pela emoção.

Elegantemente vestidos para a ocasião, fomos recebidos por uma jovenzinha – eu diria uma gueixa – que nos acomodou num ambiente aconchegante: meia luz, meia voz, música suave, gestos delicados, sintonia perfeita que o momento pedia.

Atmosfera perfumada. Toalhinha quente em um saquinho para a higiene das mãos. Viajo. Vejo-me levada por fortes samurais para uma aldeia cercada de colinas verdejantes onde, no tatame improvisado, tenho aula de artes marciais. A leveza dos gestos, o respeito ao adversário, as regras, a disciplina rígida dispensam o conhecimento do idioma.

Respiro fundo. Olho para meu amigo, que tem os olhos marejados. Emoção... A separação é inevitável e, por alguns segundos que parecem eternidade, ficamos sem palavras, só observando cada detalhe da mesa cuidadosamente preparada. Vaso enfeitado com flores e frutas combinando com as louças. Guirlandas envolvendo os copos, pétalas de rosas sobre a toalha vermelha e branca...

Meu devaneio é interrompido pela gentil garota que nos traz o cardápio. Aceito a sugestão do meu amigo. Não era o mais importante naquele momento. Para entrada, sushi e sashimi não são novidades para nós, acostumados no trato com hashis, wasabis e shoyu.

No antegozo da espera, vislumbro as mãos ágeis e delicadas no trato com os alimentos do sushiman, de rapi muito limpo e com a faixa envolvendo a cabeça. Tudo especial: os apetrechos de cozinha, o ritual na confecção de cada prato. A concentração no trabalho esconde, com certeza, a saudade da terra distante, os familiares nunca mais vistos, coração dividido numa mescla de sentimentos que o amor à nova pátria e a miscigenação favorecem. A aproximação da garota com jeito de gueixa me tira da cozinha. Vestida a caráter, quimono colorido em tons de vermelho e branco, cor preferida dos orientais, o gracioso coque preso com grandes grampos, uma bela aparição...

Como é um dia muito especial e com sabor de despedida, curto cada segundo. Percebo cada detalhe e não me escapa o olhar triste da garota que, com um sorriso contido, parece esconder um sentimento que teima em se mostrar. É um olhar distante... Será um amor não correspondido?  Alguém cuja espera se faz longa demais? Talvez seja paranóia minha numa transferência de um sentimento que é só meu... Lentamente nos servimos, medindo cada gesto. Sentindo o aroma gostoso dos pratos cuidadosamente decorados.

Pouco nos falamos, não há necessidade. Degustamos os alimentos em silêncio, envolvidos pela atmosfera reinante. Como prato principal, peixe guarnecido com legumes coloridos. O sabor característico, a leveza dos alimentos, a morosidade no trato com os hashis favorecem a concentração e a harmonia que  o ambiente e a ocasião propiciam. Sensações confusas. O tempo passa vagarosamente... Ou corre demais? Há um misto de alegria e saudade antecipadas
O chá verde digestivo de frutas e flores completa a noite. Tudo perfeito, não fosse a lágrima que teima em se fazer presente, mesmo sem ser convidada.



03-09-08 Oficina Literária FTI