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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Arlindo.... lindo



Insulado em seu mundo

Adulto franzino, coração de menino

Sons muito pouco sentidos

Olhos miúdos, distantes.

Corpo deformado, reagindo

de acordo com suas idiossincrasias.

Da pureza de sua alma,

palavras tibitateadas motivam chacotas

Em que mundo  estão suas lembranças?

No picadeiro, personagem sem papel.

Plateia miserável, inescrupulosa,

rejubila no domingo sem horizonte.

Inocência aviltada, aniquilada pelas circunstâncias.

Seu destino foi assim:

Ganhou o pão com o suor de seu rosto sulcado.

Um dia...

Deitou-se como anjo cansado,

na mesma terra que ajudara cultivar.

Sol  escaldante o coração do menino não aguentou.

Sua alma flutuaria no éter infinito.

Com júbilo, o céu recebeu Arlindo.

Livre de suas mazelas, o anjo descansou.


Homenagem ao tio Arlindo Bizzo

Geni  25/11/2014




terça-feira, 18 de novembro de 2014

Primo VENÂNCIO


Filho de imigrantes italianos e proprietário de pequena gleba voltada principalmente ao cultivo de café, tio Toni[1] teve sua vida registrada naquele pedaço de chão na zona rural de Araçatuba. O sítio distava pouco mais de trinta quilômetros do núcleo urbano, o que, para nós, crianças que morávamos na cidade, significava uma grande viagem de jardineira e uma oportunidade maior ainda de convivência com os primos. Venâncio, Aparecida (de apelido Tita), Olívia (mais conhecida por Nega), Inês. Hermínia, Isabel, João e os gêmeos Felisberto e Israel representavam para nós as raras oportunidades de passeio longe de casa.

Talvez por serem raros, eram encontros que nos reservavam grandes emoções. Descalços e com os pés sempre escalavrados com estrepes e espinhos impregnados pela terra vermelha (ferimentos que escondíamos dos tios, mesmo sentindo dor), subíamos em árvores para apanhar os melhores frutos, brincávamos e sapateávamos no riacho logo abaixo da casa, tentando apanhar os pequeninos peixes para soltá-los em seguida, levávamos “carreirões” dos bois que vinham beber água e achávamos tudo muito divertido. Os folguedos eram sempre precedidos das obrigações que tia Maria nos impunha: torrar e moer café, levar as matulas com alimento para o pessoal na roça, lavar as louças, puxar água do poço. Sinto ainda hoje o bom cheiro do enorme pão assando no forno do quintal. 

Conforme a época do ano, a natureza nos brindava com uma atração diferente. Na florada do cafezal, cujos pés que chegavam até perto da casa, era indescritível e inebriante o aroma que emanava das árvores, que pareciam fileiras de noivas com seus buquês branquinhos e perfumados. Nas férias de julho, pareciam árvores de Natal fora de época, com seus galhos enfeitados com bolinhas vermelhas. Gostávamos de apanhá-los ainda no pé, para comê-los, mesmo sabendo da bronca que levaríamos do tio, com certeza. Outra coisa que deixava meu tio ouriçado era quando limpávamos as folhas debaixo do pé para brincarmos de casinha. Segundo ele, retirávamos a proteção natural que mantinha a umidade do solo nas proximidades do tronco.

Ao cair da tarde, sentávamos na beirada do terreiro onde o café era estendido para secagem, descascando o tempo fazendo adivinhações e contando estrelas quando o luar esplendia sobre nossas cabeças. Quando não era época de colheita, o terreiro servia para grandes festas: erguia-se uma lona, contratava-se um sanfoneiro e o rastapé varava a noite.

A hora de dormir era um momento mágico. Nos singelos quartos, nas camas de palha de milho, nossas oníricas criações produziam em nós um misto de medo e diversão. Inventávamos histórias bizarras só para nos enfiar debaixo da coberta de retalhos, que nos deixava com os pés trêmulos e de fora, tal o minúsculo tamanho.

No dia seguinte tudo se repetia. Os mesmos personagens, as mesmas histórias, mas a resistência atávica me levou a falar de um personagem especial dessa história de vida: PRIMO VENÂNCIO. É ele agora o centro na minha atenção tal o marco que deixou na minha história de vida.

Primogênito, Venâncio nasceu com uma deformidade nos olhos, não sei qual ao certo. Sei que enxergava muito pouco, quando não eram apenas vultos, e que isso fazia dele merecedor de atenções especiais. Sua deficiência não o impedia de se desincumbir de suas obrigações. Era um trabalhador incansável e amante da vida na roça. Com os pés arrastados, mas com a firmeza de quem estava acostumado com o chão onde pisava, cuidava das cercas para galinhas e porcos, alimentava os animais, retirava água do poço para encher os enormes potes, rastelava os cafés esparramados no terreiro durante o período da secagem. Na roça, seu único divertimento era ouvir com atenção um rádio cuja energia era obtida por um ”acumulador” (que me parecia uma bateria de carro, não me lembro). Suas músicas? caipiras, é claro.

Minha mãe tinha um carinho muito grande por ele e ansiava um dia poder ajuda-lo de alguma maneira. Como todos, acreditava em um tratamento que o levasse à cura. Mesmo sem nenhuma instrução, mas com muita sabedoria e humildade, incumbiu-se de levá-lo, ainda rapazote, primeiramente para tratamento em Campinas, o centro oftalmológico por excelência, continuando depois o tratamento em Araçatuba.

Hospedado em nossa humilde casa, mas servida de energia elétrica e já com um modesto rádio Semp, suas necessidades de diversão estariam melhor atendidas, não fosse um pequenino problema. Meu pai era músico, coisa que já disse em outros textos, e, mesmo criado na roça, abominava música caipira. Era mais elitista em termos de musicais. Seus interesses eram os dobrados que tocava na banda de música, além de Altamiro Carrilho, Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, os tenores italianos com suas óperas imortais e outros compositores.

Mesmo assim, seu carinho pelo sobrinho e a interferência de minha mãe acabaram por permitir que em nossa casa entrasse a verdadeira música caipira. Não essas, as que hoje chamam sertaneja, muitas delas com letras de duplo sentido, de gosto duvidoso e que nada têm a ver com o povo da roça, salvo raras e honrosas exceções.

Eu acompanhava primo Venâncio até o consultório para os curativos e “proseávamos” muito. Ele falava com paixão das letras das canções de que mais gostava. Como já conhecia alguma coisa, fruto dos passeios ao sítio, por influência do primo fui conhecendo músicas imortais de João Pacífico, como “Cabloca Teresa”, “Pingo D’Água”, e Tonico e Tinoco com “Couro de Boi”, “Cavalo Preto”. Outros grandes intérpretes, como Pedro Bento e Zé da Estada, Palmeira e Biá, Texeirinha, Nhô Pai com “Beijinho Doce” e “Cabecinha no Ombro”, Torres e Florêncio, Alvarenga e Ranchinho, Tião Carreiro, Cascatinha e Inhana, além de “Tristeza do Jeca”, composição de Ângelo de Oliveira. Poderia listar um grande número dessas canções que falam da terra, dos animais (principalmente pássaros e gado), dos amores inocentes e cheios de ternura e de algumas tragédias que estão gravadas nos meus arquivos e que resgato vez em quando nas nossas cantorias em reuniões familiares.

O som da viola cala fundo no meu peito e uma saudade imensa me invade como uma doce e leve inocência que deixei para trás, mas que Renato Teixeira, Almir Sater, Rolando Boldrin e alguns outros me ajudam nesse resgate tão feliz.

Primo Venâncio já não está entre nós. Quando de sua partida, as pouquíssimas sombras que conseguia visualizar já haviam desaparecido desde há muito tempo. Homem de grande estatura e muito forte, continuou seu trabalho até o fim. Sua deficiência não o impediu de ser feliz dentro dos limites que a vida lhe impôs. Na nossa maturidade, nossos encontros se tornaram cada vez mais esporádicos. Cada um foi para um lado, minhas primas e meus irmãos casaram-se, nossos pais faleceram, eu fui para a capital. Mas sempre que possível, trocávamos notícias uns dos outros.

Tenho um gosto musical eclético, que vai dos clássicos com grandes orquestras, temas de filmes, MPB principalmente as com poesias que me tocam a alma. Mas a música caipira e o som da viola têm lugar especial no meu coração, graças ao querido PRIMO VENÂNCIO. Talvez ele nunca tenha sabido da importância de sua passagem pela minha vida. A vida na cidade me fez forte, mas a do campo me resgata a ternura.  




TENHO ALMA CAIPIRIA E ME ORGULHO DISSO. Obrigada, primo.







[1] Antônio Massaroto, casado com Maria Piveta, irmã um pouco mais velha de minha mãe.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

NATAL DIFERENTE

A noite quente e úmida cai devagarinho, quase imperceptível. Aves procelárias sobrevoam anunciando tempestade. É sempre assim nestas noites quentes no Pantanal.

A velha chalana navega vagarosamente, deslizando sobre as águas que já se fazem revoltas, mas nem por isso tiram a tranquilidade do velho timoneiro. Algumas redes rotas, presas nos esteios, balançam sem tirar o sono dos poucos passageiros. A senhora gorducha, com o bornal recheado de guloseimas natalinas ganhadas na capela da cidade, tentava dormir alheia a tudo. O homem franzino de barbicha tentava segurar com força o saco de estopa puído que deixava à mostra os cascos do leitão gordo que antevia a imolação para comemorar o nascimento do Menino Deus. A guriazinha com roupinhas de festa e dedo na boca abraçava sua boneca ninando-a cantarolando. Sentado a meu lado, um padre com sotaina desbotada e olhar beatífico segurava o negro rosário rezando baixinho. Vez em quando tocava as águas do rio, levando-a ao rosto para mitigar o calor. Tento imitá-lo molhando também minhas mãos, com certo medo dos jacarés que grassam pelas margens arriscando mergulhos. Seus olhos brilham muito, com a percepção das lanternas na focagem que o timoneiro faz para brincar comigo, marinheira de primeira viagem, com a certeza da minha inépcia.

— O senhor não tem medo, padre? Arrisco-me na pergunta um tanto tola, logo percebi.

— Por que teria? Faço isso toda semana e, por Deus, nunca nenhum notou minha presença, disse, com um sorriso um tanto maroto para um padre.
Não sabia o que dizer. Mas continuei.

— O senhor reza missa na sede da fazenda?

— Também. Mas venho visitar uma pequena comunidade indígena que necessita de todo tipo de ajuda além das rezas e benzimentos. O sofrimento é a moeda corrente do pobre.

Nesse momento, percebi o quão débil era minha presença ali. O rio gorgolejante chicoteava com a chuva pesada que começara. Minha fé não foi capaz de sustentar o peso do pavor que tenho das tempestades. Encolhi-me toda e tentei rezar, aproximando-me mais do padre, agora na certeza que estaria protegida. Fechei os olhos.

As lanterninhas que via agora não eram mais as mesmas. Elas tremeluziam na grande árvore de Natal que, a cada ano, recebia mais luzes e ficava cada vez mais bonita. O grande pinheiro abrigava ao redor do seu tronco um lindo presépio, com suas imagens principais, a cada ano acrescida de um novo componente, um carneirinho que fosse. Rezava junto com as crianças, enquanto esperava o Papai Noel que não se esquecia de ninguém.

Nem sentia o cansaço da faina que antecedera o Natal, mergulhada nos preparativos como se fosse uma empreitada redentora. Nada escapava à minha obsessiva organização. Detalhes na decoração, nas compras, na lista de familiares... Tudo fazia, como um grande general que desse a conhecer as minudências dos seus planos a seus soldados.

— A senhora está tremendo? Perguntou o sacerdote, segurando minhas mãos enrijecidas. Abra seu coração, ele pode estar enganando o sofrimento.
Em alguma árvore, uma coruja piava, acho que de frio.

— Penso que posso ter-me arrependido dessa empreitada. Abri mão dos meus sonhos natalinos, deixei para trás todos os anos vividos, como que corroídos pelo tempo inexorável.

— Quer falar sobre isso? Não necessitamos de confessionário. A nostalgia do momento pode tê-la deixado fragilizada. As noites chuvosas são assim, tornam-nos melancólicos.

Os relâmpagos pareciam flashes fotográficos, registrando cada semblante dos indiferentes passageiros acostumados com essas tempestades. Eu, cada vez mais encolhida numa improvisada capa açoitada pelo vento, refletia sobre a decisão de fugir do agitado mundo nas cidades numa época tão especial. Não conseguia entender se queria organizar minha memória ou apagá-la.

– Essa época do ano é magica e, seja o que for, é propícia para grandes reflexões, insistia o bom homem na missão do grande pescador de almas.

— Pode ser. A melancolia está-me tornando uma pessoa egoísta. Não estou sendo capaz de trabalhar minha tristeza.  Abandonei todos os que esperavam de mim, nesta data tão especial, o necessário reforço dos elos da grande corrente familiar. Procurar a simplicidade distante do burburinho e de todos foi uma decisão difícil, mas que me fará muito bem, tenho certeza. A maturidade, a introspecção, um sentido maior à vida se tornaram meu objetivo maior, mesmo sabendo que poderia ferir alguém. Mas sentia que não tomar atitude seria morrer um dia de cada vez.

A embarcação se estendia como uma serpente azulada, agora chacoalhando menos pelo amainar da borrasca.

— Devemos florescer onde Deus nos plantou, disse o padre. E essa pode ser a grande oportunidade de fazer seu belo trabalho alhures, mitigando a fome dos desvalidos de aconchego, de amor, de entendimento. A natureza é a grande escola da vida onde não há férias. Veja, está amanhecendo. O sol que começa a despontar no horizonte pode ser o início de uma nova jornada.

Os tuiuiús, as garças pantaneiras fazem algazarra; uma capivara desliza sobre as águas. Nosso pequeno grupo desperta esfregando os olhos; a chalana apita várias vezes anunciando o final da viagem. Só então me dei conta de que não havia dormido pelo do medo da chuva e pela angústia da alma.

— Padre, disse eu, com uma voz cavernosa. Não permiti que descansasse com minhas lamúrias.

— Minha filha, eu agradeço a Deus a  abençoada oportunidade de servi-Lo e gostaria que me acompanhasse na minha linda missão do congraçamento, nesta noite tão especial que teremos logo mais.

Atracamos. No píer, os ribeirinhos aguardavam familiares e encomendas. Descemos devagar, com passos trôpegos de um corpo moído pelo cansaço da noite mal dormida.  O timoneiro segurava minha mão. Eu trazia na mochila parca bagagem, parte da simplicidade que doravante faria parte da minha vida.

O pessoal dos meus contatos na fazenda podia esperar, porque era fundamental para mim nesse momento comemorar um natal diferente.

Baseado no texto de Lygia Fagundes Telles (Natal na Barca)

04-11-2014
Geni  


terça-feira, 7 de outubro de 2014

SIMPLES ASSIM

NASCEU PROFESSORA


A moenda esmaga a cana,

O doce mel escorre

fartando abelhas ouriçadas,

Indiferentes.

No reverso a intolerância

tenta esmagar na garganta

palavras  como a moenda,

Mas como o mel elas  escorrem  da  boca que não se cala,

Adocicando  nossos dias.

Verve é seu dom,

seja nas palavras filosóficas, nostálgicas ou quiméricas

Lambuzamo-nos,

Conduz-nos com maestria.

Com ela o sonho não tem fim,

Simples assim.


Ela é: Sandra Baldessin


08-10-2014




















terça-feira, 30 de setembro de 2014

DELÍRIOS


Sequestraram meus sonhos

Em território movediço do cérebro a guerrilha provoca implosão

Claridade imensa dá lugar à treva profunda

No silêncio... Somente o ronco rouco da roca rota do meu coração

Indignação difusa. Alienação?  Ilusão? Confusão mental? Quanto tempo?
Não sei. No meu delírio o tempo corre devagar,

Uma eternidade talvez.

Após o torpor, abandono as trincheiras, abro as comportas do meu peito,
deixo ir o isolamento e o medo.

Imagens oníricas retornam

A trova venceu a treva.

Há esperança!



Texto criado a partir das palavras:

GUERRILHA, CLARIDADE, TREVA, ALIENAÇÃO, ILUSÃO, HÁ ESPERANÇA.



GENI   30-09-2014

MEMÓRIA COLETIVA - ELIS REGINA

Manhã do dia 19 de janeiro. Ano 1982. A hora? Nem me lembro. Calor sufocante, nuvens escuras e densas povoam os céus anunciando chuvaradas de verão. O velho fusca percorre a Avenida dos Estados. A voz empostada do locutor anuncia sem convicção: “Morre Elis Regina”. O suor se mistura às lágrimas que escorrem abundantes. Não pode ser verdade. Parecendo conectado ao piloto, o carro segue. Sem dar conta, chego a casa e ligo imediatamente a TV. Informações controversas, declarações emocionadas e confusas, contestações sobre a causa da morte. Tudo isso não importa. Os exames não deixam dúvida: overdose. Aos 36 anos, nos deixa a maior intérprete de todos os tempos. Pimentinha, como era chamada pela sua estatura e seu comportamento irrequieto.

“Chorei, chorei muito até ficar com dó de mim” como diz a canção. Senti-me traída, ela não tinha esse direito. Ir embora justamente quando tantas barreiras haviam sido vencidas, quando era reconhecidamente a musa da nossa música nos vários gêneros, do rock ao jazz, passando pelo samba e, principalmente, pela MPB. Na cidade efervescente de São Paulo realizou seus planos artísticos. Interpretando canções, registrou momentos de felicidade, amor, tristeza, patriotismo. E denunciou a ditadura militar que se instalara no país, como em “muita patrulha, muita bagunça a coisa tá ficando ruça...”, ou em ”Quero lhe contar o que eu vivi e tudo o que aconteceu comigo...”.

Elis era assim: agitada, glamorosa, irrequieta como a cidade. Nos espetáculos de que participava, sua voz perfeita e inconfundível irradiava emoções contraditórias de melancolia e felicidade (“Vou buscar a geleira azul da solidão...”,    ”Meu coração tropical tá coberto de neve...”). Lançou autores desconhecidos e divulgou suas obras, impulsionando-os no cenário musical brasileiro (“Ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida...”). Deu roupagens novas para músicas antigas (“Táubua de tiro ao Álvaro...”). Enfim, tudo o que gravava era sucesso. Mesmo vivendo numa época difícil, com uma censura implacável.

Com minhas amigas da pensão, cantava até alta madrugada, refletindo sobre o significado das canções que ela interpretava e discutindo o pesado momento.  Arriscávamos as vozes aos acordes do violão dedilhado por uma das garotas: “Você vive o faz de conta, diz que é de mentira, brinca até cair... E você se escondeu...”. ”... Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta...”.

Em “Falso Brilhante”, um dos mais lindos espetáculos que vi, tenho a linda lembrança  de Elis no balanço florido, riso fácil, voz limpa, saracutieira como sempre. Em “saudades do Brasil”, um de seus últimos espetáculos, eu acompanhava a grande roda formada no palco pelos músicos e bailarinos. A pequenina e espevitada Elis desaparecia no grupo. E cantávamos...” como se fora a brincadeira de roda, magia,  o suor da vida no calor de irmãos...“

De repente, nossa mente se vê anuviada por essa borrasca. A melhor intérprete do Brasil deixa sua “cadeira vazia”,  “pra dizer adeus”.

Hoje, 32 anos depois, o Brasil lamenta essa ausência que não foi e jamais será esquecida porque como diz a canção “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não...”. Suas interpretações estão gravadas como “tatuagem”, porque  “...possuímos a mania de ter fé na vida”. 

Geni  29/09/2014



( “ ) palavras ou frases das canções interpretadas por Elis



terça-feira, 23 de setembro de 2014

UMA MÚSICA..... UMA HISTÓRIA

Gira, gira, gira... Rápidas paradas e o ritmo continua. Girando... girando... girando. Aos pares, acomodadas nos assentos, as pessoas giram com a roda gigante, invertendo posições: ora no alto, ora cá embaixo, no rés do chão. Acenos, mãos em concha assoprando beijos e Dalva de Oliveira em sua voz estridente faz a trilha sonora ”Guardo o lencinho branco...” Na geometria dos metais, lanternas tremeluzindo espelham uma miríade de tonalidades de verde, azul, turquesa, vermelho... Espetáculo de luzes, cores, sons e aromas. O perfume do algodão doce, da pipoca e de tantas outras guloseimas impregna as narinas já vermelhas pelo vento que se forma no sobe e desce.

Na barraca das argolas, o jovem ganha um ursinho de pelúcia para a namorada. No tiro ao alvo, o guri, segurando o enorme pirulito, chora porque quer o trenzinho que o pai não consegue acertar.  No carrossel, crianças acenam para os pais encantados com a alegria da petizada.


O serviço de alto-falante dá os recadinhos de amor que um anônimo tímido manda para alguém, oferecendo música. Nos intervalos, faz propaganda dos brinquedos e lanches. O vai e vem de pessoas enche o ar de cheiro bom de grama recém-aparada.  Olhares furtivos, flertes carregados de emoção. É o mundo encantado do parque de diversões numa cidade de pouca ou quase nenhuma opção de lazer.

A garota loira, com longas mechas de cabelos que se agitam como lençóis no varal, segura confusa o vestido rodado “saia baiana” azul de bolinhas brancas que o vento levanta  mostrando as rendas da anágua. Uma criança ainda, que flerta com a maturidade de mulher, fica rubra quando percebe a presença que a deixa hipnotizada. Ele não está girando. Apenas a observa com seu olhar doce cor de açúcar caramelado na espera que parece uma eternidade.

A roda para. Ela desce com o rosto ruborizado, mesclando tonalidades confusas de emoção. O jovem se aproxima como uma súbita rajada de vento. Os olhares se cruzam, as mãos se encontram e se apertam, caminham no meio do alarido da multidão. Momentos felizes, mas fugazes como a presença do parque.

No ano seguinte, parque de diversões estará lá novamente, no mesmo lugar, com as mesmas atrações, as mesmas músicas. Mas a cena de amor já não existe mais para aquela jovem. E Dalva de Oliveira canta “Guardei teu lencinho para recordar a boca que nele deixaste ficar...” O sonho a despertara, brincara com ela e, no final, o desengano. Ficaram as lembranças no lencinho manchado de carmim.  

Memórias      23-09-2014



terça-feira, 16 de setembro de 2014

Uma linda mulher (tia Iracema)

Iracema nasceu num dia 13. Era o mês de março de 1930. Linda, morena, corpo perfeito, olhos cujo azul brilhante variava de cor conforme claridade, à semelhança das águas do mar.
Jovem cheia de sonhos sobrevivia na miséria da roça em um distrito de Araçatuba chamado Prata. Naquele rincão, caçula de uma família numerosa e desorganizada, com um pai autoritário e vítima do álcool, dois irmãos com deficiência e mãe submissa, não tinha sequer o direito de sonhar.
Nossa diferença de idade não é grande. Sou a segunda filha de seu irmão mais velho e, como acontecia naquele tempo, os filhos casados iam-se agregando à casa do Nono. Vivíamos sob o mesmo teto, o que aumentava o número de pessoas e, com ele, os encontros e desencontros. Por isso minhas lembranças são vivas. E hoje quero falar delas.
Éramos uma família de colonos, o que significava muito trabalho e pouco soldo, sem qualquer direito, nem mesmo o de plantar e criar nas terras dos patrões. A solução? Buscar na cidade, como retirantes do próprio chão, uma porta aberta que permitisse vislumbrar um horizonte menos sombrio.
Com os parcos recursos que conseguiu juntar, Nono comprou um terreno na periferia da cidade e para lá nos mudamos todos.  No mesmo quintal, mas em casas separadas, o que já sinalizava algo menos miserável do que o local de onde viemos. Além do Nono e da Nona, vieram meu pai com esposa e quatro filhos, dois irmãos deficientes e duas irmãs solteiras, uma das quais Iracema. As outras três irmãs já haviam se casado e acompanhado os maridos.
 Nessa nova vida, rica em perguntas e pobre em respostas, a busca sem rumo era feita de maneira difusa e angustiosa. O caminho? Só um aquele reservado a quem foi negado o direito ao conhecimento: o emprego doméstico realizado todos os dias, de manhã à noite, inclusive sábados e domingos. Era essa a vida sem norte, vivida pela plebe anônima e sofredora.
Para Iracema, linda num mundo novo, onde trabalhar com as mãos não dava status, cheia de sonhos e vazia de orientação, não foi difícil encontrar quem a cortejasse, embora com intenções nem sempre claras ou honestas. O comportamento bruto dos pais dentro de casa fazia dela uma presa fácil para os sequestradores de ilusões. Seu paraíso e inferno começaram aí. Ilusão e violência acabaram por levá-la daquele lugar a que chamava lar.
Para meu Nono, a vergonha potencializada pelo álcool. Meu pai, que carregava o ônus das responsabilidades impostas ao mais velho, acompanhava o genitor no rancor que nem eles mesmos entendiam bem. O certo é que tia Iracema, ao buscar seu próprio mundo, fugia dos padrões ditos normais para época.
O tempo corria e, com ele, os encontros e desencontros na triste realidade em que vivíamos. Contava eu oito anos, quando tia Iracema retornou ao lar pelos braços de um senhor que, cheio de bons sentimentos, reaproximou-a da família e do perdão.
Mas a vida lhe reservava outro destino. Um fato triste traria novas mudanças para aquela recente rotina e romperia nosso efêmero convívio. Meu Nono, por razões que desconhecemos por mais que conjecturamos, tirou a própria vida, trazendo mais rudeza naquela dura realidade. O que se descortinava a partir de então não seria nada belo para nenhum de nós.
Deixemos de lado os demais personagens. Hoje pretendo falar de tia Iracema, cujo nome indígena, cheio de significado e romance, conferia a ela um destino especial na sua estrada cheia de curvas, com uma história diferente em cada pedaço do caminho.
Dois anos se passaram desde aquele trágico incidente que tirou a vida do Nono. Dona Pina, como minha mãe era conhecida, acabara de parir Nair, sua última filha. Com seu jeitinho muito peculiar, conseguira de meu pai o perdão para sua irmã. Tia Iracema retorna ao nosso convívio, trazendo nos braços a pequena Tânia, nascida no dia 15 daquele setembro de 1952.
Tânia e Nair, praticamente da mesma idade, mantinham convivência harmoniosa, embora Tânia, com melhores condições financeiras e um tanto mimada, provocasse algumas briguinhas que as mães prontamente apaziguavam, fazendo voltar a paz entre elas.
Minha mãe e tia Iracema mantinham uma relação afetiva muito grande, mais do que se irmãs fossem. Uma cuidava da outra. Nos vários períodos da doença que minava a resistência de Dona Pina, eram os conhecimentos da tia que possibilitavam tratamento, tão difícil naquela época. Mas, mesmo com todos os cuidados, a doença foi mais forte e a levou.
A partir daí, fortaleceram-se os laços de união entre mim e tia Iracema. Nas idas e vindas da roda do destino, a vida seguia seu curso. Às vezes célere, às vezes arrastando-se, mas sempre reforçando cumplicidade entre nós, favorecida pelo imenso bem-querer que nutríamos uma pela outra. Cumplicidade que estava sempre presente, intermediando a difícil relação que o gênio difícil de meu pai impunha ao nosso dia a dia.
Tia Iracema agora conheceria o homem que mudou radicalmente o rumo de sua vida. Tânia, oito anos, cabelos encaracolados, linda e meiga, teria também seu destino retraçado a partir daí.
Senhor Agnaldo Fontão de Almeida enchia o peito orgulhoso quando falava de seu nome. Homem culto, formação universitária, amoroso com a mãe, era viajante de laboratório, profissional respeitoso e respeitado.
Conheceram-se e a aproximação com nossa família foi rápida e completa. Gostávamos de ouvi-lo falar, tomávamos vinho e apreciávamos uma boa música, principalmente tangos.
Nossa tia agora pensava em reconstruir sua vida dentro da normalidade que todos cobravam, inclusive ela. Engravidou.  Gravidez de risco, em função da idade.
Felizmente correu tudo bem. Dois meninos. Tânia foi a portadora da grande notícia, em uma época em que sexo e número de rebentos eram revelados apenas no momento do parto. Agnaldo, como o pai, e André Luiz em homenagem ao grande mentor espiritual, nasceram no dia 12 de novembro de 1963. Tânia ganharia um pai e herdaria dele seu nome.

Nova vida, muitas alegrias e trabalho também. Tia Iracema continuava linda, Apenas trocou glamour de outrora pela simplicidade da vida de dona de casa, totalmente dedicada ao marido e principalmente aos filhos.  
Tânia, muito estudiosa e inteligente, acumulava as funções de babá com os deveres da escola. Não sem sentir-se incomodada, criança ainda que era. Sr. Agnaldo, pai idoso e cheio de manias, como é comum nesses casos, exigia dela mais do que poderia dar em seu esplendor de adolescente.
Andréia
A chegada de Andreia no ano seguinte, se prazerosa pela beleza que a pequenina irradiava, aumentou o trabalho, já intenso. As alegrias mesclavam-se com os afazeres múltiplos. Tia Iracema dava conta sem nunca reclamar. A prioridade eram os filhos. A casa, ah!... Essa sofria com as reinações dos meninos que, por ordem do pai, não podiam ser contrariados.
Aos dezesseis anos, Tânia alçou seu voo de independência, mesmo que incompleta, pois não tinha meios financeiros para tanto. Mesmo assim, foi em busca de recomeçar uma vida que chamaria de sua a partir dali. Começava o ano de 1969. Foi para a capital paulista. No início, morando com amigos; depois, procurando seu ninho, aliando muito trabalho e estudo, dedicada que era.
Os pais mudaram-se para Agudos, com os três filhos menores. Muito apegada aos irmãos, visitava-os constantemente. Quis o destino que seu amor fosse descoberto justo ali, na casa dos pais dos amigos que a receberam no início da jornada na capital. Evandro, seu amigo de infância, agora seu marido – casaram-se em­ setembro de 1975 – tornou-se grande amigo dos cunhados, mantendo com eles até hoje uma sólida amizade.
Evandro, Tânia, Thiago e Cris
Em Agudos, cidade pequena, distante de parentes e conhecidos de outrora e já sem o frescor da juventude, tia Iracema, sempre muito bonita e elegante, recomeçou sua vida voltada à lida doméstica, enfrentando algumas dificuldades na luta para criar e formar seus filhos.
Conseguiu. Formaram-se todos. Agnaldo casou-se com Marisa e tiveram dois filhos,
Fernanda e Caio. André casou com Elizabeth. O casal também presenteou os avós com dois filhos, Vinicius e Sophia. Andréia, concursada, ingressou Np Tribunal de Contas na capital, mas continuou muito ligada à família. Em março de 1979, Tania e Evandro optaram por morar em Agudos, e lhe deram um lindo neto, de nome Thiago. Permaneceram dando apoio muito de perto até os últimos dias do casal.
Sr. Agnaldo partiu para outro plano no dia 23 de outubro de 2003, aos 86 anos. Tia Iracema ainda permaneceu na antiga casa por mais algum tempo.  Logo, porém, optou por desfazer-se do imóvel, revezando sua estada nas casas dos filhos.
Vinicius, Sophia, Elizabeth e André
Saúde agora frágil em função de complicações comuns à idade, optou por fixar-se na casa de Tânia e Evandro, local que lhe facilitava acesso aos profissionais de saúde.
Mãos enrugadas e frágeis, os olhos azuis ainda muito brilhantes, mas agora a iluminar um rosto marcado pelos sulcos profundos.  A memória traiçoeira a aprontar das suas. Sorridente e paciente aceitava toda a situação quando os lapsos de lucidez permitiam. Tive o privilégio, algumas vezes, talvez pela nossa grande afinidade e proximidade, de ser reconhecida e chamada pelo nome.
Em seu 80º aniversário, os filhos lhe prestaram homenagem com uma linda festa. Ela estava linda. Podia-se ver através da lente da memória aquele rosto com o mesmo brilho de outrora. Cantamos e brincamos, com ela tentando resgatar um pouco do passado. Mas seu sorriso distante evidenciava uma ausência que, concordamos, era benéfica, pois minimizava o sofrimento que poderia causar.
No dia 4 de dezembro de 2011 tia Iracema nos deixou. Serena, tranquila, com a consciência do dever cumprido, mesmo tendo sobrevivido ao tsunami que se abateu sobre ela em certo período. Sua partida deixou nossa existência mais pobre, mas a história enriquecida pelas nossas lembranças carregadas da energia que ela distribuiu.






Meu depoimento. Querida tia: Obrigada pela sua presença em minha vida. Talvez você nunca tenha tido a ideia real de quanto foi importante para mim e para os meus. Tenho certeza de que cumpriu seu papel e que, na espiritualidade, esteja tendo o que sempre buscou e mereceu: PAZ.




16/09/2014

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Caboclinho das cruzes


Criatividade e pesquisa eram características de Kiko, um garotinho de olhos grandes e cabelos espetados cor de fogo. Na escola se destacava pelas ideias mirabolantes, que repartia com os amigos numa doce alegria. Quando a empreita era mais arrojada, geralmente solicitava o auxílio do pai, porque tinha noção do perigo. Foi numa dessas pesquisas que tudo aconteceu.
Kiko teria que fazer um trabalho sobre insetos e outros animaizinhos nem sempre dóceis que habitam as matas: aranhas, cobras e lagartos. Não muito longe de sua casa havia um capão de mato, que não raro procurava para suas aventuras. E para lá foi Kiko, caderno e lápis à mão e o pai a tiracolo.
Em alguma árvore próxima um passarinho cantava. Uma anotação aqui, outra acolá, enlevados ambos pela doce melodia da natureza, mergulharam na mata e no doce trabalho da pesquisa. Kiko contava ao pai as histórias que lera sobre os seres nem animais nem humanos que eram donos desses lugares, e ambos se divertiam entre as anotações e risos. Quando perceberam, a luz do pôr do sol já emoldurava as árvores. Caía a noite. Podia-se já observar ao longe as luzes da cidade piscando, dando impressão de constante movimento. Concordaram que já havia passado da hora de voltar.
Juntaram suas tralhas e empreenderam a jornada. Sem se darem conta, andavam, andavam e voltavam sempre ao mesmo lugar. O tempo passava e a escuridão tomava conta de tudo. Somente a luz de uma minúscula lanterna os guiava. O medo começou tomar conta de ambos, embora o pai procurasse disfarçar.
Foi quando o velho lembrou-se de uma história que seu bisavô havia contado ao seu avô, que contara para ele que, não acreditando, não passara adiante. Sua fé não foi capaz de sustentar o peso de seu temor. Era uma ideia absurda, achava, mas nesse momento começou a tomar asas em sua mente, voando como uma pipa ao sabor do vento.
Exaustos, sentaram-se numa pedra cheia de limo e Kiko atento ouvia a narrativa do pai que, ansioso e com a voz rouca de emoção, discorreu sobre o que ouvira quando garoto.
Era uma vila minúscula, onde todos se conheciam. Não muito distante ficava o pequeno cemitério. Naquele tempo, era comum todo povoado acompanhar a pé seus defuntos até à última morada. Covas pequenas, com algumas pedras ao redor. As cruzes, enfileiradas com suas plaquetas a identificar o “morador”, assumiam aspecto macabro ao entardecer. Aí começa a história, que o bisavô contava cheio de pavor.
Numa certa noite, voltava ele de um baile sozinho, como sempre cortando caminho pela rua que margeava o cemitério. Com a coragem potencializada pelo álcool, passou a bisbilhotar o lugar, tentando distinguir alguma coisa na escuridão. Foi quando viu um caboclinho de tranças, olhos vermelhos e camisolão pulando de uma cruz a outra, como numa brincadeira de amarelinha. Não deu outra. Irritado com o desrespeito com os mortos, passou a gritar com o garoto.
— Desça já daí, vá embora, garoto atrevido.
O menino sorria e continuava suas acrobacias, sem dar ouvidos. De repente, desapareceu, como num passe de mágica. Com a coragem fraquejada, o bisavô desatou a correr. Mas, que nada! Rodava, rodava e não saía do lugar. E assim continuou durante toda a madrugada, até que o céu de um cinza azulado antecipava a chegada do amanhecer.
Foi quando saiu daquele torpor e conseguiu retornar. Mas as imagens não lhe saíam da cabeça. Aquele não era um garoto real, era uma assombração... ou um anjo! Por via das dúvidas, resolveu mandar rezar uma missa, fez uma novena. Segundo ele, o medo se convertera em fé. Toda vez que se encontrava perdido, chamava pelo menino das cruzes e seu pedido era atendido.
Kiko e o pai se entreolharam, deram-se as mãos e oraram com fervor ao caboclinho das cruzes. Como que uma luz surgiu de repente. A fé os guiava e eles retornaram com tranquilidade. E perceberam que a saída era logo ali, muito próximo deles.
A história não parou por aí. Kiko era um pesquisador nato e, em agradecimento, resolveu saber a história desse menino enigmático.
Nada encontrando na biblioteca, resolveu empreender a jornada de repórter investigativo. Soube de idosos que eles também ouviram de seus pais a história fantástica do caboclinho das cruzes. Um menino muito pobre que vivia com sua mãe numa mansarda distante, quase no meio da mata próxima de um rio. Eram felizes e sobreviviam do plantio. As poucas sobras eram vendidas para comprar as roupas que cobriam seus corpos esquálidos.
Numa noite de grande tempestade, o pequeno rio transbordou, alagando o casebre que não resistiu e sucumbiu com a força das águas. O olhos apavorados do menino assistiram a correnteza levar sua mãe, sem nada poder fazer.
Sozinho, o menino passou a viver da misericórdia do povo do lugar. Seu passatempo favorito era visitar o cemitério, procurando uma cruz com o nome de sua mãe. Pesquisa inútil, pois o corpo nunca fora encontrado. Desde então, o lugar passou a ser preferido para suas brincadeiras: contava as cruzes, arrumava as que caíam, colocava flores que recolhia pela cidade.  Um dia foi encontrado sem vida junto ao portão do Campo Santo. Morto para a miserável vida, mas muito vivo como anjo, continuou visitando seu lugar favorito. Ajudava os perdidos, mas ai daquele que ousasse afrontá-lo, pois teriam o castigo merecido: ficavam pedidos.
Kiko gostou do que ouviu, achou fantástica a narrativa e, temendo que se perdesse no tempo, resolveu transformá-la em livro, para que as gerações futuras tivessem conhecimento dessa história tão rica e tão cheia de emoção.
Verdade? Fantasia? Crença? Não importa. O que vale são as emoções que desperta e a criatividade que desenvolve nos leitores.


Geni 16-06-2014