Iracema nasceu num dia 13. Era o
mês de março de 1930. Linda, morena, corpo perfeito, olhos cujo azul brilhante variava
de cor conforme claridade, à semelhança das águas do mar.
Jovem cheia de sonhos sobrevivia na
miséria da roça em um distrito de Araçatuba chamado Prata. Naquele rincão, caçula
de uma família numerosa e desorganizada, com um pai autoritário e vítima do
álcool, dois irmãos com deficiência e mãe submissa, não tinha sequer o direito
de sonhar.
Nossa diferença de idade não é
grande. Sou a segunda filha de seu irmão mais velho e, como acontecia naquele
tempo, os filhos casados iam-se agregando à casa do Nono. Vivíamos sob o mesmo
teto, o que aumentava o número de pessoas e, com ele, os encontros e
desencontros. Por isso minhas lembranças são vivas. E hoje quero falar delas.
Éramos uma família de colonos, o
que significava muito trabalho e pouco soldo, sem qualquer direito, nem mesmo o
de plantar e criar nas terras dos patrões. A solução? Buscar na cidade, como
retirantes do próprio chão, uma porta aberta que permitisse vislumbrar um
horizonte menos sombrio.
Com os parcos recursos que
conseguiu juntar, Nono comprou um terreno na periferia da cidade e para lá nos
mudamos todos. No mesmo quintal, mas em
casas separadas, o que já sinalizava algo menos miserável do que o local de
onde viemos. Além do Nono e da Nona, vieram meu pai com esposa e quatro filhos,
dois irmãos deficientes e duas irmãs solteiras, uma das quais Iracema. As
outras três irmãs já haviam se casado e acompanhado os maridos.
Nessa nova
vida, rica em perguntas e pobre em respostas, a busca sem rumo era feita de
maneira difusa e angustiosa. O caminho? Só um aquele reservado a quem foi
negado o direito ao conhecimento: o emprego doméstico realizado todos os dias, de
manhã à noite, inclusive sábados e domingos. Era essa a vida sem norte, vivida
pela plebe anônima e sofredora.
Para Iracema, linda num mundo novo,
onde trabalhar com as mãos não dava status,
cheia de sonhos e vazia de orientação, não foi difícil encontrar quem a
cortejasse, embora com intenções nem sempre claras ou honestas. O comportamento
bruto dos pais dentro de casa fazia dela uma presa fácil para os sequestradores
de ilusões. Seu paraíso e inferno começaram aí. Ilusão e violência acabaram por
levá-la daquele lugar a que chamava lar.
Para meu Nono, a vergonha
potencializada pelo álcool. Meu pai, que carregava o ônus das responsabilidades
impostas ao mais velho, acompanhava o genitor no rancor que nem eles mesmos
entendiam bem. O certo é que tia Iracema, ao buscar seu próprio mundo, fugia
dos padrões ditos normais para época.
O tempo corria e, com ele, os
encontros e desencontros na triste realidade em que vivíamos. Contava eu oito
anos, quando tia Iracema retornou ao lar pelos braços de um senhor que, cheio
de bons sentimentos, reaproximou-a da família e do perdão.
Mas a vida lhe reservava outro
destino. Um fato triste traria novas mudanças para aquela recente rotina e
romperia nosso efêmero convívio. Meu Nono, por razões que desconhecemos por
mais que conjecturamos, tirou a própria vida, trazendo mais rudeza
naquela dura realidade. O que se descortinava a partir de então não seria nada
belo para nenhum de nós.
Deixemos de lado os demais personagens.
Hoje pretendo falar de tia Iracema, cujo nome indígena, cheio de significado e
romance, conferia a ela um destino especial na sua estrada cheia de curvas, com
uma história diferente em cada pedaço do caminho.
Dois anos se passaram desde aquele
trágico incidente que tirou a vida do Nono. Dona Pina, como minha mãe era
conhecida, acabara de parir Nair, sua última filha. Com seu jeitinho muito
peculiar, conseguira de meu pai o perdão para sua irmã. Tia Iracema retorna ao
nosso convívio, trazendo nos braços a pequena Tânia, nascida no dia 15
daquele setembro de 1952.
Tânia e Nair, praticamente da mesma
idade, mantinham convivência harmoniosa, embora Tânia, com melhores condições
financeiras e um tanto mimada, provocasse algumas briguinhas que as mães prontamente
apaziguavam, fazendo voltar a paz entre elas.
Minha mãe e tia Iracema mantinham
uma relação afetiva muito grande, mais do que se irmãs fossem. Uma cuidava da
outra. Nos vários períodos da doença que minava a resistência de Dona Pina, eram
os conhecimentos da tia que possibilitavam tratamento, tão difícil naquela época. Mas, mesmo
com todos os cuidados, a doença foi mais forte e a levou.
A partir daí, fortaleceram-se os
laços de união entre mim e tia Iracema. Nas idas e vindas da roda do destino, a
vida seguia seu curso. Às vezes célere, às vezes arrastando-se, mas sempre reforçando
cumplicidade entre nós, favorecida pelo imenso bem-querer que nutríamos uma
pela outra. Cumplicidade que estava sempre presente, intermediando a difícil
relação que o gênio difícil de meu pai impunha ao nosso dia a dia.
Tia Iracema agora conheceria o
homem que mudou radicalmente o rumo de sua vida. Tânia, oito anos, cabelos
encaracolados, linda e meiga, teria também seu destino retraçado a partir daí.
Senhor Agnaldo Fontão de Almeida
enchia o peito orgulhoso quando falava de seu nome. Homem culto, formação
universitária, amoroso com a mãe, era viajante de laboratório, profissional
respeitoso e respeitado.
Conheceram-se e a aproximação com
nossa família foi rápida e completa. Gostávamos de ouvi-lo falar, tomávamos
vinho e apreciávamos uma boa música, principalmente tangos.
Nossa tia agora pensava em
reconstruir sua vida dentro da normalidade que todos cobravam, inclusive ela. Engravidou.
Gravidez de risco, em função da idade.
Felizmente correu tudo bem. Dois meninos.
Tânia foi a portadora da grande notícia, em uma época em que sexo e número de
rebentos eram revelados apenas no momento do parto. Agnaldo, como
o pai, e André Luiz em homenagem ao grande mentor espiritual, nasceram
no dia 12 de novembro de 1963. Tânia ganharia um pai e herdaria dele seu nome.
Nova vida, muitas alegrias e
trabalho também. Tia Iracema continuava linda, Apenas trocou glamour de outrora
pela simplicidade da vida de dona de casa, totalmente dedicada ao marido e
principalmente aos filhos.
Tânia, muito estudiosa e inteligente,
acumulava as funções de babá com os deveres da escola. Não sem sentir-se
incomodada, criança ainda que era. Sr. Agnaldo, pai idoso e cheio de manias,
como é comum nesses casos, exigia dela mais do que poderia dar em seu
esplendor de adolescente.
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Andréia |
A chegada de Andreia no ano
seguinte, se prazerosa pela beleza que a pequenina irradiava, aumentou o
trabalho, já intenso. As alegrias mesclavam-se com os afazeres múltiplos. Tia Iracema
dava conta sem nunca reclamar. A prioridade eram os filhos. A casa, ah!... Essa sofria
com as reinações dos meninos que, por ordem do pai, não podiam ser
contrariados.
Aos dezesseis anos, Tânia alçou seu
voo de independência, mesmo que incompleta, pois não tinha meios financeiros para
tanto. Mesmo assim, foi em busca de recomeçar uma vida que chamaria de sua a
partir dali. Começava o ano de 1969. Foi para a capital paulista. No início,
morando com amigos; depois, procurando seu ninho, aliando muito trabalho e
estudo, dedicada que era.
Os pais mudaram-se para Agudos, com
os três filhos menores. Muito apegada aos irmãos, visitava-os constantemente. Quis o destino que seu amor fosse descoberto justo ali, na casa dos pais dos amigos
que a receberam no início da jornada na capital. Evandro, seu amigo de
infância, agora seu marido – casaram-se em setembro de 1975 – tornou-se grande
amigo dos cunhados, mantendo com eles até hoje uma sólida amizade.
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Evandro, Tânia, Thiago e Cris |
Em Agudos, cidade pequena, distante
de parentes e conhecidos de outrora e já sem o frescor da juventude, tia
Iracema, sempre muito bonita e elegante, recomeçou sua vida voltada à lida
doméstica, enfrentando algumas dificuldades na luta para criar e formar seus
filhos.
Conseguiu. Formaram-se todos.
Agnaldo casou-se com Marisa e tiveram dois filhos,
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Marisa, Caio, Aguinaldo e Fernanda |
Fernanda e Caio. André casou
com Elizabeth. O casal também presenteou os avós com dois filhos, Vinicius e
Sophia. Andréia, concursada, ingressou Np Tribunal de Contas na capital, mas continuou muito ligada à família. Em
março de 1979, Tania e Evandro optaram por morar em Agudos, e lhe deram um
lindo neto, de nome Thiago. Permaneceram dando apoio muito de perto até os
últimos dias do casal.
Sr. Agnaldo partiu para outro plano
no dia 23 de outubro de 2003, aos 86 anos. Tia Iracema ainda permaneceu na antiga casa por
mais algum tempo. Logo, porém, optou por
desfazer-se do imóvel, revezando sua estada nas casas dos filhos.
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Vinicius, Sophia, Elizabeth e André |
Saúde agora frágil em função de
complicações comuns à idade, optou por fixar-se na casa de Tânia e Evandro, local
que lhe facilitava acesso aos profissionais de saúde.
Mãos enrugadas e frágeis, os olhos
azuis ainda muito brilhantes, mas agora a iluminar um rosto marcado pelos
sulcos profundos. A memória traiçoeira a
aprontar das suas. Sorridente e paciente aceitava toda a situação quando os
lapsos de lucidez permitiam. Tive o privilégio, algumas vezes, talvez pela
nossa grande afinidade e proximidade, de ser reconhecida e chamada pelo nome.
Em seu 80º aniversário, os filhos
lhe prestaram homenagem com uma linda festa. Ela estava linda. Podia-se ver
através da lente da memória aquele rosto com o mesmo brilho de outrora.
Cantamos e brincamos, com ela tentando resgatar um pouco do passado. Mas seu
sorriso distante evidenciava uma ausência que, concordamos, era benéfica, pois
minimizava o sofrimento que poderia causar.
No dia 4 de dezembro de 2011 tia
Iracema nos deixou. Serena, tranquila, com a consciência do dever cumprido,
mesmo tendo sobrevivido ao tsunami que se abateu sobre ela em certo período. Sua
partida deixou nossa existência mais pobre, mas a história enriquecida pelas nossas
lembranças carregadas da energia que ela distribuiu.
Meu depoimento. Querida tia:
Obrigada pela sua presença em minha vida. Talvez você nunca tenha tido a ideia
real de quanto foi importante para mim e para os meus. Tenho certeza de que
cumpriu seu papel e que, na espiritualidade, esteja tendo o que sempre buscou e
mereceu: PAZ.
16/09/2014