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terça-feira, 23 de outubro de 2012

Família grande ou grande família?


Essa família é muito unida, e também muito ouriçada.Brigam por qualquer razão, mas acabam pedindo perdão...”Música de abertura de um programa semanal da Globo.
É tradição na teledramaturgia brasileira construir histórias que têm como tema central a família, principalmente aquela caótica e divertida, ingrediente de sucesso garantido porque cai no gosto popular.
Nessa linha, “A Família Trapo”, série inspirada na família vonTrapp, de “A Noviça Rebelde”, foi a primeira comédia de situação nos anos 1960; “Sai de Baixo”, série da Globo que utilizava a linguagem teatral e ia ao ar nos finais de noite dos domingos, ficou no ar por longos 7 anos. “A Grande Família”, também da Globo, repete o feito. Na décima-segunda temporada, a história ambientada em um subúrbio fictício de uma grande cidade apresenta personagens espalhafatosos e sentimentais, mas sempre muito unidos, apesar das confusões que criam durante a trama.
Pensando nisso me veio à lembrança uma frase que meu saudoso irmão Antenor costumava dizer, referindo-se à nossa família: “Nóis não tem defeito; os outro, se não tivé, nóis  põe”. Nossa família é grande, mas também uma grande família, inclusive no sentido dado pela série da Globo. Em várias situações falei sobre o assunto. Hoje, o enfoque é a irmandade.
Somos sete irmãos, filhos de dois casamentos de meu pai. Embora possamos agir de forma diferente, dependendo da situação, somos muito parecidos física e emocionalmente. Nossas características individuais são sempre preservadas e respeitadas. Uma delas: nós nos amamos muito. E o carinho que temos um pelo outro estendemos a todos aqueles que passaram a fazer parte do grupo, seja por ligações conjugais, seja por laços de amizade.
Eu disse que nos respeitamos muito. Mas essa nossa característica não nasceu conosco. Foi resultado de um grande aprendizado durante a vida, principalmente imposto pelo meu pai, que não admitia brigas entre irmãos e muito menos que seus filhos ficassem sem se falar. Na minha casa não existia discussões nem xingamentos. Mesmo que talvez por medo, aprendemos a colocar sempre o respeito em primeiro lugar.
Gosto de falar de minha infância que, apesar das muitas privações, da ausência de sonhos, das decepções e enganos, é fonte de lembranças de uma família unida por elos de afeto muito fortes. Hoje, trazendo um pouco de volta o passado, quero registrar um momento de cada um na nossa convivência.

Evanir, a primogênita. Apesar de termos quase a mesma idade (sou apenas um ano e três meses mais nova), somos muito diferentes em todos os sentidos. Desde criança, Vani – como é normalmente chamada – foi muito comportada. Aprendeu corte e costura com apenas doze anos e, desde então, puxou para si o cuidado com as roupas de toda família. Mais feminina, não gostava das brincadeiras de que eu participava, como subir em árvores, correr pela rua esburacada, brincar nos riachos formados pela água da chuva e que desciam como uma veia rompida. Por isso, vivia eu com as roupas desgrenhadas, o que acabava resultando em mais trabalho para ela. Desde garota gostava muito de dançar e o fazia muito bem. Mesmo com nossas diferenças, éramos parceiras e nos ajudávamos mutuamente, sempre com muita cumplicidade. Meu registro fica por conta de uma viagem que fizemos ao bairro da Prata, um povoado de Araçatuba, local de nosso nascimento e onde até hoje residem alguns nossos parentes sitiantes. O trajeto, se feito hoje de carro, não dura mais que 20 minutos. Mas naquela época era diferente. O caminho era percorrido em uma “jardineira” (espécie de perua desengonçada, com o motor na frente e duas portas que se abriam na parte traseira). E lá ia a jardineira, na sua longa viagem, sacolejando na estrada poeirenta e cheia de buracos. Num dado momento, não se sabe como, a porta se abriu e lá se foi a Evanir pequenina (devia ter uns cinco ou seis anos, não me recordo bem). Minha mãe gritou desesperada e o motorista parou. Descemos todos apavorados, mas foi só um susto. Vani sobreviveu com apenas alguns arranhões e a roupinha nova toda suja da terra vermelha que, em grande quantidade, amorteceu a queda que nem foi muito violenta. Afinal, a velocidade do veículo era pouco maior que a da marcha de um cavalo. Não me lembro de muitos detalhes, mas essa imagem forte ficou retida na minha memória.
Agenor, o terceiro filho, dois anos mais novo que eu. Sempre fomos companheiros, quer nos afazeres domésticos de que sempre cuidamos desde muito cedo, até a ida à escola. Meu irmão, desde garotinho, sempre tinha sua própria opinião, o que o fazia isolar-se um pouco. Era ensimesmado e se refugiava nas leituras de seus gibis e revistas sobre cinema. Entre nossos afazeres domésticos, um consistia em transportar a água que colhíamos de uma torneira próxima à cerca da entrada da casa até o tanque que ficava nos fundos. Acho que fazíamos uma centena dessas viagens todos os dias, porque a roupa a lavar era muita e mamãe era muito exigente quanto à limpeza. Atravessávamos um pedaço de madeira na alça de um balde, para que cada um pudesse segurar de um lado, o que distribuía o peso e aliviava a carga. Não raro ele soltava seu lado, seja porque eu não fazia alguma coisa direito, seja por qualquer outro motivo. A água entornava e o “caldo” esquentava para os dois porque, como já disse, em casa as consequências eram sempre do grupo, não importava de quem era a razão. Quando íamos levar o almoço para papai, caminhávamos por entre os trilhos da linha férrea. No percurso, combinávamos que cada um levaria um pouco o bornal com a comida e o café até um ponto que demarcávamos. Eu, sempre tagarela, entabulava uma conversa que o fazia não perceber que o trecho dele havia terminado e, com isso, fazia com que ele carregasse a carga por mais tempo. Quando descobria que havia sido ludibriado, soltava tudo no chão e, de raiva, recusava-se a continuar no jogo, fazendo com que eu levasse o almoço de papai até o fim. Pequeninas coisas, mas de grande importância, lembradas com saudade da nossa parceria, que permanece até hoje.
Nestor, o quarto. Lembro-me do dia do seu nascimento e da mudança para a cidade, apenas 20 dias depois. Eu, com apenas quatro anos de idade, segurava aquele pequenino no colo, para que nossa minúscula mudança fosse colocada no caminhão. De temperamento calmo, gostava de brincar com seu estilingue ou com as bolinhas de gude junto com os meninos da vizinhança. Mas também tinha seus afazeres. Buscar verdura na horta, transportar água para casa e serragem para o fogão eram algumas de suas tarefas. Ajudava-me também quando levávamos a roupa passada para a freguesa de nossa mãe. Eu levava a trouxa mais pesada e ele cuidava dos cabides com as camisas. Certo dia, distraído como ele era, deixou cair as roupas no chão de terra. Foi um Deus nos acuda. Catamos logo, sacudimos, assopramos e colocamos no lugar. Se a patroa percebeu, nunca falou, nem tampouco contamos para nossa mãe. Distraídos sim, bobos não. Talvez ele não se lembre.
Antenor, o quinto. Gorduchinho e o de menor estatura. Muito inteligente, matriculou-se sozinho numa escolinha de emergência que havia no bairro. A escola era assim chamada antes da construção do grupo escolar para onde ele foi transferido depois. Conversou com a professora, falou que queria estudar e minha mãe foi chamada para que fizesse a matrícula oficial antes do tempo previsto na lei. Tinha ele menos de dois anos quando nos mudamos para perto do “seu” Claudionor (Nonô, como era chamado) que, para nós, era homem de posses – tinha coisas que não sonhávamos ter, como liquidificador, rádio vitrola e uma vida com melhores condições do que a nossa. Gostava de tocar seus discos de 78 rotações num som alto que aborrecia meu pai, mas que deixava o Antenor empolgadíssimo em sua dancinha circular com grossas perninhas tortas. Sua musica preferida era Dom Pedrito, cantada por Bob Nelson. Bastou isso para que “seu” Nonô o apelidasse com o nome da música. Apesar de seus sete filhos, ele se encantava mesmo era quando via o mano dançar. Antenor partiu “antes do combinado” deixou muitas lembranças, entre elas o mote deste texto.
Nair, a sexta e última filha da minha mãe. Ela foi minha boneca, meu bichinho de pelúcia, coisas que eu não tive. Desde que nasceu foi muito apegada a mim, não tanto pela afinidade que temos, mas pela necessidade. Minha mãe trabalhava muito e não podia cuidar dela o tempo todo, e me passava essa atribuição. Eu tinha dez anos e queria brincar com minhas amigas, mas minha mãe só deixava se eu a levasse a tiracolo para onde fosse. Ela fazia parte das minhas brincadeiras. Lembro-me de  um dia em que eu a balançava no berço ­– o mesmo que havia sido construído pelo meu pai e que embalara todos os outros e que por isso, já estava todo remendado e com o balanço não muito confiável. Eu, dentro do berço com ela (imaginem a cena apertada no minúsculo espaço) cantarolava para que ela dormisse enquanto, aos solavancos, tentava controlar o tal balanço desgovernado. Não deu outra. Fomos as duas pro chão, deixando minha mãe apavorada com nossos gritos – os meus pelo medo dos beliscões que com certeza viriam.
Sílvio César, o sétimo e último filho do papai e o primeiro com Maristela, em seu segundo casamento. Trinta anos separam nossas datas de nascimento. Por isso, tenho frescas na memória muitas recordações de sua infância, algumas bem marcantes. Mas uma em especial foi, e ainda é, motivo de muita piada. Por isso, é sobre ela meu relato. Sempre que sabia de minha visita à casa de nosso pai (eu morava em São Bernardo do Campo), ele aguardava ansioso o presente que seguramente viria. Ele devia contar cinco anos aproximadamente, não me lembro bem, e era carnaval. Eu, apegada à arte indígena e a seus costumes, não tive dúvida: levei de presente uma fantasia de índio. Ele a vestiu teve seu corpo pintado, foi fotografado, uma festa. Para os outros, não para ele. Não entendi o porquê de seu choro e de sua recusa a um presente que eu havia escolhido com tanto gosto. Só mais tarde fiquei sabendo o motivo, que até hoje nos faz rir. Ele mesmo, espirituoso que é, sempre que surge o assunto fala dos "anos de terapia a que teve que se submeter para superar o trauma".  Ele estava esperando uma fantasia de super-herói, e recebeu uma de índio, não tão herói assim e ainda por cima rosa. Até hoje, quando nos encontramos, esse assunto vem à baila, só para fazer retornar minha dor de consciência.
Quando nossos amigos estão presentes nas nossas reuniões alegres ou tristes, percebem e comentam o quanto nossa família é diferenciada. Fazemos de tudo para permanecermos unidos aparando arestas, abafando egos, deixando de lado melindres, porque situações embaraçosas também existem nessa família como em qualquer outra. Entretanto, o que nos diferencia é a maneira como tratamos as situações e nada, mas nada mesmo, consegue nos separar. Segundo uma amiga querida, nós somos uma “máfia” e o nome Bizzo que carregamos com orgulho é sinônimo de superação, de amizade e de um enorme querer bem.
Com muito carinho quero registrar aqui o trabalho muitas vezes silencioso e discreto, mas que teve e tem papel fundamental para manter agregados os grupos que se formaram a partir dos casamentos na família. Além do nome que herdaram, minhas cunhadas carregaram também a responsabilidade de não interferir nem permitir interferências que tisnassem o brilho dessa “grande família”. São elas:
Vera Lúcia, casada com Agenor;





Marilene, casada com o Nestor;






Maria Auxiliadora, esposa do Antenor e que o antecedeu na “grande viagem”,






Maria Cristina (Kiti), depois Tatiana, casadas com Sílvio César.






Por último, meu cunhado Hirata, tão companheiro em qualquer circunstância que não carrega o nome, mas mantém a mesma disposição e o cuidado de ajudar manter essa tão bonita união. Com eles nossa família foi ampliada pelos casamentos dos filhos que vieram dar um colorido especial em nossas vidas e também nos trouxeram seus familiares, que entendemos uma grande extensão da nossa família.

Falar de minha família daria uma coleção de livros, mas não é esse o objetivo. Se faço esses pequenos registros é porque não quero deixar morrer nossas tradições nem confiar só na memória, que um dia poderá me trair. Escrevendo, eu a exercito esperando que, no futuro, alguém possa resgatar alguns dados pra preservar nossa história.