Filho
de imigrantes italianos e proprietário de pequena gleba voltada principalmente
ao cultivo de café, tio Toni
teve sua vida registrada naquele pedaço de chão na zona rural de Araçatuba. O
sítio distava pouco mais de trinta quilômetros do núcleo urbano, o que, para
nós, crianças que morávamos na cidade, significava uma grande viagem de
jardineira e uma oportunidade maior ainda de convivência com os primos. Venâncio,
Aparecida (de apelido Tita), Olívia (mais conhecida por Nega), Inês. Hermínia,
Isabel, João e os gêmeos Felisberto e Israel representavam para nós as raras oportunidades
de passeio longe de casa.
Talvez
por serem raros, eram encontros que nos reservavam grandes emoções. Descalços e
com os pés sempre escalavrados com estrepes e espinhos impregnados pela terra
vermelha (ferimentos que escondíamos dos tios, mesmo sentindo dor), subíamos em
árvores para apanhar os melhores frutos, brincávamos e sapateávamos no riacho
logo abaixo da casa, tentando apanhar os pequeninos peixes para soltá-los em
seguida, levávamos “carreirões” dos bois que vinham beber água e achávamos tudo
muito divertido. Os folguedos eram sempre precedidos das obrigações que tia
Maria nos impunha: torrar e moer café, levar as matulas com alimento para o
pessoal na roça, lavar as louças, puxar água do poço. Sinto ainda hoje o bom
cheiro do enorme pão assando no forno do quintal.
Conforme
a época do ano, a natureza nos brindava com uma atração diferente. Na florada
do cafezal, cujos pés que chegavam até perto da casa, era indescritível e
inebriante o aroma que emanava das árvores, que pareciam fileiras de noivas com
seus buquês branquinhos e perfumados. Nas férias de julho, pareciam árvores de
Natal fora de época, com seus galhos enfeitados com bolinhas vermelhas. Gostávamos
de apanhá-los ainda no pé, para comê-los, mesmo sabendo da bronca que
levaríamos do tio, com certeza. Outra coisa que deixava meu tio ouriçado era
quando limpávamos as folhas debaixo do pé para brincarmos de casinha. Segundo
ele, retirávamos a proteção natural que mantinha a umidade do solo nas
proximidades do tronco.
Ao
cair da tarde, sentávamos na beirada do terreiro onde o café era estendido para
secagem, descascando o tempo fazendo adivinhações e contando estrelas quando o
luar esplendia sobre nossas cabeças. Quando não era época de colheita, o
terreiro servia para grandes festas: erguia-se uma lona, contratava-se um
sanfoneiro e o rastapé varava a noite.
A
hora de dormir era um momento mágico. Nos singelos quartos, nas camas de palha
de milho, nossas oníricas criações produziam em nós um misto de medo e
diversão. Inventávamos histórias bizarras só para nos enfiar debaixo da coberta
de retalhos, que nos deixava com os pés trêmulos e de fora, tal o minúsculo
tamanho.
No
dia seguinte tudo se repetia. Os mesmos personagens, as mesmas histórias, mas a
resistência atávica me levou a falar de um personagem especial dessa história
de vida: PRIMO VENÂNCIO. É ele agora o centro na minha atenção tal o marco que
deixou na minha história de vida.
Primogênito,
Venâncio nasceu com uma deformidade nos olhos, não sei qual ao certo. Sei que
enxergava muito pouco, quando não eram apenas vultos, e que isso fazia dele
merecedor de atenções especiais. Sua deficiência não o impedia de se
desincumbir de suas obrigações. Era um trabalhador incansável e amante da vida
na roça. Com os pés arrastados, mas com a firmeza de quem estava acostumado com
o chão onde pisava, cuidava das cercas para galinhas e porcos, alimentava os
animais, retirava água do poço para encher os enormes potes, rastelava os cafés
esparramados no terreiro durante o período da secagem. Na roça, seu único
divertimento era ouvir com atenção um rádio cuja energia era obtida por um
”acumulador” (que me parecia uma bateria de carro, não me lembro). Suas
músicas? caipiras, é claro.
Minha
mãe tinha um carinho muito grande por ele e ansiava um dia poder ajuda-lo de
alguma maneira. Como todos, acreditava em um tratamento que o levasse à cura. Mesmo
sem nenhuma instrução, mas com muita sabedoria e humildade, incumbiu-se de
levá-lo, ainda rapazote, primeiramente para tratamento em Campinas, o centro
oftalmológico por excelência, continuando depois o tratamento em Araçatuba.
Hospedado
em nossa humilde casa, mas servida de energia elétrica e já com um modesto
rádio Semp, suas necessidades de diversão estariam melhor atendidas, não fosse
um pequenino problema. Meu pai era músico, coisa que já disse em outros textos,
e, mesmo criado na roça, abominava música caipira. Era mais elitista em termos
de musicais. Seus interesses eram os dobrados que tocava na banda de música,
além de Altamiro Carrilho, Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, os tenores italianos
com suas óperas imortais e outros compositores.
Mesmo
assim, seu carinho pelo sobrinho e a interferência de minha mãe acabaram por
permitir que em nossa casa entrasse a verdadeira música caipira. Não essas, as que
hoje chamam sertaneja, muitas delas com letras de duplo sentido, de gosto
duvidoso e que nada têm a ver com o povo da roça, salvo raras e honrosas
exceções.
Eu
acompanhava primo Venâncio até o consultório para os curativos e “proseávamos”
muito. Ele falava com paixão das letras das canções de que mais gostava. Como
já conhecia alguma coisa, fruto dos passeios ao sítio, por influência do primo
fui conhecendo músicas imortais de João Pacífico, como “Cabloca Teresa”, “Pingo
D’Água”, e Tonico e Tinoco com “Couro de Boi”, “Cavalo Preto”. Outros grandes
intérpretes, como Pedro Bento e Zé da Estada, Palmeira e Biá, Texeirinha, Nhô
Pai com “Beijinho Doce” e “Cabecinha no Ombro”, Torres e Florêncio, Alvarenga e
Ranchinho, Tião Carreiro, Cascatinha e Inhana, além de “Tristeza do Jeca”,
composição de Ângelo de Oliveira. Poderia listar um grande número dessas
canções que falam da terra, dos animais (principalmente pássaros e gado), dos
amores inocentes e cheios de ternura e de algumas tragédias que estão gravadas
nos meus arquivos e que resgato vez em quando nas nossas cantorias em reuniões
familiares.
O
som da viola cala fundo no meu peito e uma saudade imensa me invade como uma
doce e leve inocência que deixei para trás, mas que Renato Teixeira, Almir
Sater, Rolando Boldrin e alguns outros me ajudam nesse resgate tão feliz.
Primo
Venâncio já não está entre nós. Quando de sua partida, as pouquíssimas sombras
que conseguia visualizar já haviam desaparecido desde há muito tempo. Homem de
grande estatura e muito forte, continuou seu trabalho até o fim. Sua
deficiência não o impediu de ser feliz dentro dos limites que a vida lhe impôs.
Na nossa maturidade, nossos encontros se tornaram cada vez mais esporádicos. Cada
um foi para um lado, minhas primas e meus irmãos casaram-se, nossos pais
faleceram, eu fui para a capital. Mas sempre que possível, trocávamos notícias
uns dos outros.
Tenho
um gosto musical eclético, que vai dos clássicos com grandes orquestras, temas
de filmes, MPB principalmente as com poesias que me tocam a alma. Mas a música
caipira e o som da viola têm lugar especial no meu coração, graças ao querido
PRIMO VENÂNCIO. Talvez ele nunca tenha sabido da importância de sua passagem
pela minha vida. A vida na cidade me fez forte, mas a do campo me resgata a
ternura.
TENHO ALMA CAIPIRIA E ME
ORGULHO DISSO. Obrigada, primo.