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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Arlindo.... lindo



Insulado em seu mundo

Adulto franzino, coração de menino

Sons muito pouco sentidos

Olhos miúdos, distantes.

Corpo deformado, reagindo

de acordo com suas idiossincrasias.

Da pureza de sua alma,

palavras tibitateadas motivam chacotas

Em que mundo  estão suas lembranças?

No picadeiro, personagem sem papel.

Plateia miserável, inescrupulosa,

rejubila no domingo sem horizonte.

Inocência aviltada, aniquilada pelas circunstâncias.

Seu destino foi assim:

Ganhou o pão com o suor de seu rosto sulcado.

Um dia...

Deitou-se como anjo cansado,

na mesma terra que ajudara cultivar.

Sol  escaldante o coração do menino não aguentou.

Sua alma flutuaria no éter infinito.

Com júbilo, o céu recebeu Arlindo.

Livre de suas mazelas, o anjo descansou.


Homenagem ao tio Arlindo Bizzo

Geni  25/11/2014




terça-feira, 18 de novembro de 2014

Primo VENÂNCIO


Filho de imigrantes italianos e proprietário de pequena gleba voltada principalmente ao cultivo de café, tio Toni[1] teve sua vida registrada naquele pedaço de chão na zona rural de Araçatuba. O sítio distava pouco mais de trinta quilômetros do núcleo urbano, o que, para nós, crianças que morávamos na cidade, significava uma grande viagem de jardineira e uma oportunidade maior ainda de convivência com os primos. Venâncio, Aparecida (de apelido Tita), Olívia (mais conhecida por Nega), Inês. Hermínia, Isabel, João e os gêmeos Felisberto e Israel representavam para nós as raras oportunidades de passeio longe de casa.

Talvez por serem raros, eram encontros que nos reservavam grandes emoções. Descalços e com os pés sempre escalavrados com estrepes e espinhos impregnados pela terra vermelha (ferimentos que escondíamos dos tios, mesmo sentindo dor), subíamos em árvores para apanhar os melhores frutos, brincávamos e sapateávamos no riacho logo abaixo da casa, tentando apanhar os pequeninos peixes para soltá-los em seguida, levávamos “carreirões” dos bois que vinham beber água e achávamos tudo muito divertido. Os folguedos eram sempre precedidos das obrigações que tia Maria nos impunha: torrar e moer café, levar as matulas com alimento para o pessoal na roça, lavar as louças, puxar água do poço. Sinto ainda hoje o bom cheiro do enorme pão assando no forno do quintal. 

Conforme a época do ano, a natureza nos brindava com uma atração diferente. Na florada do cafezal, cujos pés que chegavam até perto da casa, era indescritível e inebriante o aroma que emanava das árvores, que pareciam fileiras de noivas com seus buquês branquinhos e perfumados. Nas férias de julho, pareciam árvores de Natal fora de época, com seus galhos enfeitados com bolinhas vermelhas. Gostávamos de apanhá-los ainda no pé, para comê-los, mesmo sabendo da bronca que levaríamos do tio, com certeza. Outra coisa que deixava meu tio ouriçado era quando limpávamos as folhas debaixo do pé para brincarmos de casinha. Segundo ele, retirávamos a proteção natural que mantinha a umidade do solo nas proximidades do tronco.

Ao cair da tarde, sentávamos na beirada do terreiro onde o café era estendido para secagem, descascando o tempo fazendo adivinhações e contando estrelas quando o luar esplendia sobre nossas cabeças. Quando não era época de colheita, o terreiro servia para grandes festas: erguia-se uma lona, contratava-se um sanfoneiro e o rastapé varava a noite.

A hora de dormir era um momento mágico. Nos singelos quartos, nas camas de palha de milho, nossas oníricas criações produziam em nós um misto de medo e diversão. Inventávamos histórias bizarras só para nos enfiar debaixo da coberta de retalhos, que nos deixava com os pés trêmulos e de fora, tal o minúsculo tamanho.

No dia seguinte tudo se repetia. Os mesmos personagens, as mesmas histórias, mas a resistência atávica me levou a falar de um personagem especial dessa história de vida: PRIMO VENÂNCIO. É ele agora o centro na minha atenção tal o marco que deixou na minha história de vida.

Primogênito, Venâncio nasceu com uma deformidade nos olhos, não sei qual ao certo. Sei que enxergava muito pouco, quando não eram apenas vultos, e que isso fazia dele merecedor de atenções especiais. Sua deficiência não o impedia de se desincumbir de suas obrigações. Era um trabalhador incansável e amante da vida na roça. Com os pés arrastados, mas com a firmeza de quem estava acostumado com o chão onde pisava, cuidava das cercas para galinhas e porcos, alimentava os animais, retirava água do poço para encher os enormes potes, rastelava os cafés esparramados no terreiro durante o período da secagem. Na roça, seu único divertimento era ouvir com atenção um rádio cuja energia era obtida por um ”acumulador” (que me parecia uma bateria de carro, não me lembro). Suas músicas? caipiras, é claro.

Minha mãe tinha um carinho muito grande por ele e ansiava um dia poder ajuda-lo de alguma maneira. Como todos, acreditava em um tratamento que o levasse à cura. Mesmo sem nenhuma instrução, mas com muita sabedoria e humildade, incumbiu-se de levá-lo, ainda rapazote, primeiramente para tratamento em Campinas, o centro oftalmológico por excelência, continuando depois o tratamento em Araçatuba.

Hospedado em nossa humilde casa, mas servida de energia elétrica e já com um modesto rádio Semp, suas necessidades de diversão estariam melhor atendidas, não fosse um pequenino problema. Meu pai era músico, coisa que já disse em outros textos, e, mesmo criado na roça, abominava música caipira. Era mais elitista em termos de musicais. Seus interesses eram os dobrados que tocava na banda de música, além de Altamiro Carrilho, Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, os tenores italianos com suas óperas imortais e outros compositores.

Mesmo assim, seu carinho pelo sobrinho e a interferência de minha mãe acabaram por permitir que em nossa casa entrasse a verdadeira música caipira. Não essas, as que hoje chamam sertaneja, muitas delas com letras de duplo sentido, de gosto duvidoso e que nada têm a ver com o povo da roça, salvo raras e honrosas exceções.

Eu acompanhava primo Venâncio até o consultório para os curativos e “proseávamos” muito. Ele falava com paixão das letras das canções de que mais gostava. Como já conhecia alguma coisa, fruto dos passeios ao sítio, por influência do primo fui conhecendo músicas imortais de João Pacífico, como “Cabloca Teresa”, “Pingo D’Água”, e Tonico e Tinoco com “Couro de Boi”, “Cavalo Preto”. Outros grandes intérpretes, como Pedro Bento e Zé da Estada, Palmeira e Biá, Texeirinha, Nhô Pai com “Beijinho Doce” e “Cabecinha no Ombro”, Torres e Florêncio, Alvarenga e Ranchinho, Tião Carreiro, Cascatinha e Inhana, além de “Tristeza do Jeca”, composição de Ângelo de Oliveira. Poderia listar um grande número dessas canções que falam da terra, dos animais (principalmente pássaros e gado), dos amores inocentes e cheios de ternura e de algumas tragédias que estão gravadas nos meus arquivos e que resgato vez em quando nas nossas cantorias em reuniões familiares.

O som da viola cala fundo no meu peito e uma saudade imensa me invade como uma doce e leve inocência que deixei para trás, mas que Renato Teixeira, Almir Sater, Rolando Boldrin e alguns outros me ajudam nesse resgate tão feliz.

Primo Venâncio já não está entre nós. Quando de sua partida, as pouquíssimas sombras que conseguia visualizar já haviam desaparecido desde há muito tempo. Homem de grande estatura e muito forte, continuou seu trabalho até o fim. Sua deficiência não o impediu de ser feliz dentro dos limites que a vida lhe impôs. Na nossa maturidade, nossos encontros se tornaram cada vez mais esporádicos. Cada um foi para um lado, minhas primas e meus irmãos casaram-se, nossos pais faleceram, eu fui para a capital. Mas sempre que possível, trocávamos notícias uns dos outros.

Tenho um gosto musical eclético, que vai dos clássicos com grandes orquestras, temas de filmes, MPB principalmente as com poesias que me tocam a alma. Mas a música caipira e o som da viola têm lugar especial no meu coração, graças ao querido PRIMO VENÂNCIO. Talvez ele nunca tenha sabido da importância de sua passagem pela minha vida. A vida na cidade me fez forte, mas a do campo me resgata a ternura.  




TENHO ALMA CAIPIRIA E ME ORGULHO DISSO. Obrigada, primo.







[1] Antônio Massaroto, casado com Maria Piveta, irmã um pouco mais velha de minha mãe.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

NATAL DIFERENTE

A noite quente e úmida cai devagarinho, quase imperceptível. Aves procelárias sobrevoam anunciando tempestade. É sempre assim nestas noites quentes no Pantanal.

A velha chalana navega vagarosamente, deslizando sobre as águas que já se fazem revoltas, mas nem por isso tiram a tranquilidade do velho timoneiro. Algumas redes rotas, presas nos esteios, balançam sem tirar o sono dos poucos passageiros. A senhora gorducha, com o bornal recheado de guloseimas natalinas ganhadas na capela da cidade, tentava dormir alheia a tudo. O homem franzino de barbicha tentava segurar com força o saco de estopa puído que deixava à mostra os cascos do leitão gordo que antevia a imolação para comemorar o nascimento do Menino Deus. A guriazinha com roupinhas de festa e dedo na boca abraçava sua boneca ninando-a cantarolando. Sentado a meu lado, um padre com sotaina desbotada e olhar beatífico segurava o negro rosário rezando baixinho. Vez em quando tocava as águas do rio, levando-a ao rosto para mitigar o calor. Tento imitá-lo molhando também minhas mãos, com certo medo dos jacarés que grassam pelas margens arriscando mergulhos. Seus olhos brilham muito, com a percepção das lanternas na focagem que o timoneiro faz para brincar comigo, marinheira de primeira viagem, com a certeza da minha inépcia.

— O senhor não tem medo, padre? Arrisco-me na pergunta um tanto tola, logo percebi.

— Por que teria? Faço isso toda semana e, por Deus, nunca nenhum notou minha presença, disse, com um sorriso um tanto maroto para um padre.
Não sabia o que dizer. Mas continuei.

— O senhor reza missa na sede da fazenda?

— Também. Mas venho visitar uma pequena comunidade indígena que necessita de todo tipo de ajuda além das rezas e benzimentos. O sofrimento é a moeda corrente do pobre.

Nesse momento, percebi o quão débil era minha presença ali. O rio gorgolejante chicoteava com a chuva pesada que começara. Minha fé não foi capaz de sustentar o peso do pavor que tenho das tempestades. Encolhi-me toda e tentei rezar, aproximando-me mais do padre, agora na certeza que estaria protegida. Fechei os olhos.

As lanterninhas que via agora não eram mais as mesmas. Elas tremeluziam na grande árvore de Natal que, a cada ano, recebia mais luzes e ficava cada vez mais bonita. O grande pinheiro abrigava ao redor do seu tronco um lindo presépio, com suas imagens principais, a cada ano acrescida de um novo componente, um carneirinho que fosse. Rezava junto com as crianças, enquanto esperava o Papai Noel que não se esquecia de ninguém.

Nem sentia o cansaço da faina que antecedera o Natal, mergulhada nos preparativos como se fosse uma empreitada redentora. Nada escapava à minha obsessiva organização. Detalhes na decoração, nas compras, na lista de familiares... Tudo fazia, como um grande general que desse a conhecer as minudências dos seus planos a seus soldados.

— A senhora está tremendo? Perguntou o sacerdote, segurando minhas mãos enrijecidas. Abra seu coração, ele pode estar enganando o sofrimento.
Em alguma árvore, uma coruja piava, acho que de frio.

— Penso que posso ter-me arrependido dessa empreitada. Abri mão dos meus sonhos natalinos, deixei para trás todos os anos vividos, como que corroídos pelo tempo inexorável.

— Quer falar sobre isso? Não necessitamos de confessionário. A nostalgia do momento pode tê-la deixado fragilizada. As noites chuvosas são assim, tornam-nos melancólicos.

Os relâmpagos pareciam flashes fotográficos, registrando cada semblante dos indiferentes passageiros acostumados com essas tempestades. Eu, cada vez mais encolhida numa improvisada capa açoitada pelo vento, refletia sobre a decisão de fugir do agitado mundo nas cidades numa época tão especial. Não conseguia entender se queria organizar minha memória ou apagá-la.

– Essa época do ano é magica e, seja o que for, é propícia para grandes reflexões, insistia o bom homem na missão do grande pescador de almas.

— Pode ser. A melancolia está-me tornando uma pessoa egoísta. Não estou sendo capaz de trabalhar minha tristeza.  Abandonei todos os que esperavam de mim, nesta data tão especial, o necessário reforço dos elos da grande corrente familiar. Procurar a simplicidade distante do burburinho e de todos foi uma decisão difícil, mas que me fará muito bem, tenho certeza. A maturidade, a introspecção, um sentido maior à vida se tornaram meu objetivo maior, mesmo sabendo que poderia ferir alguém. Mas sentia que não tomar atitude seria morrer um dia de cada vez.

A embarcação se estendia como uma serpente azulada, agora chacoalhando menos pelo amainar da borrasca.

— Devemos florescer onde Deus nos plantou, disse o padre. E essa pode ser a grande oportunidade de fazer seu belo trabalho alhures, mitigando a fome dos desvalidos de aconchego, de amor, de entendimento. A natureza é a grande escola da vida onde não há férias. Veja, está amanhecendo. O sol que começa a despontar no horizonte pode ser o início de uma nova jornada.

Os tuiuiús, as garças pantaneiras fazem algazarra; uma capivara desliza sobre as águas. Nosso pequeno grupo desperta esfregando os olhos; a chalana apita várias vezes anunciando o final da viagem. Só então me dei conta de que não havia dormido pelo do medo da chuva e pela angústia da alma.

— Padre, disse eu, com uma voz cavernosa. Não permiti que descansasse com minhas lamúrias.

— Minha filha, eu agradeço a Deus a  abençoada oportunidade de servi-Lo e gostaria que me acompanhasse na minha linda missão do congraçamento, nesta noite tão especial que teremos logo mais.

Atracamos. No píer, os ribeirinhos aguardavam familiares e encomendas. Descemos devagar, com passos trôpegos de um corpo moído pelo cansaço da noite mal dormida.  O timoneiro segurava minha mão. Eu trazia na mochila parca bagagem, parte da simplicidade que doravante faria parte da minha vida.

O pessoal dos meus contatos na fazenda podia esperar, porque era fundamental para mim nesse momento comemorar um natal diferente.

Baseado no texto de Lygia Fagundes Telles (Natal na Barca)

04-11-2014
Geni