A noite quente e úmida cai
devagarinho, quase imperceptível. Aves procelárias sobrevoam anunciando
tempestade. É sempre assim nestas noites quentes no Pantanal.
A velha chalana navega
vagarosamente, deslizando sobre as águas que já se fazem revoltas, mas nem por
isso tiram a tranquilidade do velho timoneiro. Algumas redes rotas, presas nos
esteios, balançam sem tirar o sono dos poucos passageiros. A senhora gorducha,
com o bornal recheado de guloseimas natalinas ganhadas na capela da cidade,
tentava dormir alheia a tudo. O homem franzino de barbicha tentava segurar com
força o saco de estopa puído que deixava à mostra os cascos do leitão gordo que
antevia a imolação para comemorar o nascimento do Menino Deus. A guriazinha com
roupinhas de festa e dedo na boca abraçava sua boneca ninando-a cantarolando.
Sentado a meu lado, um padre com sotaina desbotada e olhar beatífico segurava o
negro rosário rezando baixinho. Vez em quando tocava as águas do rio, levando-a
ao rosto para mitigar o calor. Tento imitá-lo molhando também minhas mãos, com
certo medo dos jacarés que grassam pelas margens arriscando mergulhos. Seus
olhos brilham muito, com a percepção das lanternas na focagem que o timoneiro
faz para brincar comigo, marinheira de primeira viagem, com a certeza da minha
inépcia.
— O senhor não tem medo, padre? Arrisco-me
na pergunta um tanto tola, logo percebi.
— Por que teria? Faço isso toda
semana e, por Deus, nunca nenhum notou minha presença, disse, com um sorriso um
tanto maroto para um padre.
Não sabia o que dizer. Mas
continuei.
— O senhor reza missa na sede da
fazenda?
— Também. Mas venho visitar uma
pequena comunidade indígena que necessita de todo tipo de ajuda além das rezas
e benzimentos. O sofrimento é a moeda corrente do pobre.
Nesse momento, percebi o quão débil
era minha presença ali. O rio gorgolejante chicoteava com a chuva pesada que
começara. Minha fé não foi capaz de sustentar o peso do pavor que tenho das
tempestades. Encolhi-me toda e tentei rezar, aproximando-me mais do padre,
agora na certeza que estaria protegida. Fechei os olhos.
As lanterninhas que via agora não
eram mais as mesmas. Elas tremeluziam na grande árvore de Natal que, a cada ano,
recebia mais luzes e ficava cada vez mais bonita. O grande pinheiro abrigava ao
redor do seu tronco um lindo presépio, com suas imagens principais, a cada ano
acrescida de um novo componente, um carneirinho que fosse. Rezava junto com as
crianças, enquanto esperava o Papai Noel que não se esquecia de ninguém.
Nem sentia o cansaço da faina que
antecedera o Natal, mergulhada nos preparativos como se fosse uma empreitada
redentora. Nada escapava à minha obsessiva organização. Detalhes na decoração, nas
compras, na lista de familiares... Tudo fazia, como um grande general que desse
a conhecer as minudências dos seus planos a seus soldados.
— A senhora está tremendo? Perguntou
o sacerdote, segurando minhas mãos enrijecidas. Abra seu coração, ele pode estar
enganando o sofrimento.
Em alguma árvore, uma coruja piava,
acho que de frio.
— Penso que posso ter-me
arrependido dessa empreitada. Abri mão dos meus sonhos natalinos, deixei para
trás todos os anos vividos, como que corroídos pelo tempo inexorável.
— Quer falar sobre isso? Não
necessitamos de confessionário. A nostalgia do momento pode tê-la deixado
fragilizada. As noites chuvosas são assim, tornam-nos melancólicos.
Os relâmpagos pareciam flashes fotográficos, registrando cada
semblante dos indiferentes passageiros acostumados com essas tempestades. Eu,
cada vez mais encolhida numa improvisada capa açoitada pelo vento, refletia
sobre a decisão de fugir do agitado mundo nas cidades numa época tão especial.
Não conseguia entender se queria organizar minha memória ou apagá-la.
– Essa época do ano é magica e,
seja o que for, é propícia para grandes reflexões, insistia o bom homem na
missão do grande pescador de almas.
— Pode ser. A melancolia está-me
tornando uma pessoa egoísta. Não estou sendo capaz de trabalhar minha tristeza.
Abandonei todos os que esperavam de mim,
nesta data tão especial, o necessário reforço dos elos da grande corrente
familiar. Procurar a simplicidade distante do burburinho e de todos foi uma
decisão difícil, mas que me fará muito bem, tenho certeza. A maturidade, a
introspecção, um sentido maior à vida se tornaram meu objetivo maior, mesmo
sabendo que poderia ferir alguém. Mas sentia que não tomar atitude seria morrer
um dia de cada vez.
A embarcação se estendia como uma
serpente azulada, agora chacoalhando menos pelo amainar da borrasca.
— Devemos florescer onde Deus nos
plantou, disse o padre. E essa pode ser a grande oportunidade de fazer seu belo
trabalho alhures, mitigando a fome dos desvalidos de aconchego, de amor, de
entendimento. A natureza é a grande escola da vida onde não há férias. Veja,
está amanhecendo. O sol que começa a despontar no horizonte pode ser o início
de uma nova jornada.
Os tuiuiús, as garças pantaneiras
fazem algazarra; uma capivara desliza sobre as águas. Nosso pequeno grupo
desperta esfregando os olhos; a chalana apita várias vezes anunciando o final
da viagem. Só então me dei conta de que não havia dormido pelo do medo da chuva
e pela angústia da alma.
— Padre, disse eu, com uma voz
cavernosa. Não permiti que descansasse com minhas lamúrias.
— Minha filha, eu agradeço a Deus a
abençoada oportunidade de servi-Lo e
gostaria que me acompanhasse na minha linda missão do congraçamento, nesta
noite tão especial que teremos logo mais.
Atracamos. No píer, os ribeirinhos
aguardavam familiares e encomendas. Descemos devagar, com passos trôpegos de um
corpo moído pelo cansaço da noite mal dormida. O timoneiro segurava minha mão. Eu trazia na
mochila parca bagagem, parte da simplicidade que doravante faria parte da minha
vida.
O pessoal dos meus contatos na
fazenda podia esperar, porque era fundamental para mim nesse momento comemorar
um natal diferente.
Baseado no
texto de Lygia Fagundes Telles (Natal na Barca)
04-11-2014
Geni
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