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terça-feira, 18 de novembro de 2014

Primo VENÂNCIO


Filho de imigrantes italianos e proprietário de pequena gleba voltada principalmente ao cultivo de café, tio Toni[1] teve sua vida registrada naquele pedaço de chão na zona rural de Araçatuba. O sítio distava pouco mais de trinta quilômetros do núcleo urbano, o que, para nós, crianças que morávamos na cidade, significava uma grande viagem de jardineira e uma oportunidade maior ainda de convivência com os primos. Venâncio, Aparecida (de apelido Tita), Olívia (mais conhecida por Nega), Inês. Hermínia, Isabel, João e os gêmeos Felisberto e Israel representavam para nós as raras oportunidades de passeio longe de casa.

Talvez por serem raros, eram encontros que nos reservavam grandes emoções. Descalços e com os pés sempre escalavrados com estrepes e espinhos impregnados pela terra vermelha (ferimentos que escondíamos dos tios, mesmo sentindo dor), subíamos em árvores para apanhar os melhores frutos, brincávamos e sapateávamos no riacho logo abaixo da casa, tentando apanhar os pequeninos peixes para soltá-los em seguida, levávamos “carreirões” dos bois que vinham beber água e achávamos tudo muito divertido. Os folguedos eram sempre precedidos das obrigações que tia Maria nos impunha: torrar e moer café, levar as matulas com alimento para o pessoal na roça, lavar as louças, puxar água do poço. Sinto ainda hoje o bom cheiro do enorme pão assando no forno do quintal. 

Conforme a época do ano, a natureza nos brindava com uma atração diferente. Na florada do cafezal, cujos pés que chegavam até perto da casa, era indescritível e inebriante o aroma que emanava das árvores, que pareciam fileiras de noivas com seus buquês branquinhos e perfumados. Nas férias de julho, pareciam árvores de Natal fora de época, com seus galhos enfeitados com bolinhas vermelhas. Gostávamos de apanhá-los ainda no pé, para comê-los, mesmo sabendo da bronca que levaríamos do tio, com certeza. Outra coisa que deixava meu tio ouriçado era quando limpávamos as folhas debaixo do pé para brincarmos de casinha. Segundo ele, retirávamos a proteção natural que mantinha a umidade do solo nas proximidades do tronco.

Ao cair da tarde, sentávamos na beirada do terreiro onde o café era estendido para secagem, descascando o tempo fazendo adivinhações e contando estrelas quando o luar esplendia sobre nossas cabeças. Quando não era época de colheita, o terreiro servia para grandes festas: erguia-se uma lona, contratava-se um sanfoneiro e o rastapé varava a noite.

A hora de dormir era um momento mágico. Nos singelos quartos, nas camas de palha de milho, nossas oníricas criações produziam em nós um misto de medo e diversão. Inventávamos histórias bizarras só para nos enfiar debaixo da coberta de retalhos, que nos deixava com os pés trêmulos e de fora, tal o minúsculo tamanho.

No dia seguinte tudo se repetia. Os mesmos personagens, as mesmas histórias, mas a resistência atávica me levou a falar de um personagem especial dessa história de vida: PRIMO VENÂNCIO. É ele agora o centro na minha atenção tal o marco que deixou na minha história de vida.

Primogênito, Venâncio nasceu com uma deformidade nos olhos, não sei qual ao certo. Sei que enxergava muito pouco, quando não eram apenas vultos, e que isso fazia dele merecedor de atenções especiais. Sua deficiência não o impedia de se desincumbir de suas obrigações. Era um trabalhador incansável e amante da vida na roça. Com os pés arrastados, mas com a firmeza de quem estava acostumado com o chão onde pisava, cuidava das cercas para galinhas e porcos, alimentava os animais, retirava água do poço para encher os enormes potes, rastelava os cafés esparramados no terreiro durante o período da secagem. Na roça, seu único divertimento era ouvir com atenção um rádio cuja energia era obtida por um ”acumulador” (que me parecia uma bateria de carro, não me lembro). Suas músicas? caipiras, é claro.

Minha mãe tinha um carinho muito grande por ele e ansiava um dia poder ajuda-lo de alguma maneira. Como todos, acreditava em um tratamento que o levasse à cura. Mesmo sem nenhuma instrução, mas com muita sabedoria e humildade, incumbiu-se de levá-lo, ainda rapazote, primeiramente para tratamento em Campinas, o centro oftalmológico por excelência, continuando depois o tratamento em Araçatuba.

Hospedado em nossa humilde casa, mas servida de energia elétrica e já com um modesto rádio Semp, suas necessidades de diversão estariam melhor atendidas, não fosse um pequenino problema. Meu pai era músico, coisa que já disse em outros textos, e, mesmo criado na roça, abominava música caipira. Era mais elitista em termos de musicais. Seus interesses eram os dobrados que tocava na banda de música, além de Altamiro Carrilho, Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, os tenores italianos com suas óperas imortais e outros compositores.

Mesmo assim, seu carinho pelo sobrinho e a interferência de minha mãe acabaram por permitir que em nossa casa entrasse a verdadeira música caipira. Não essas, as que hoje chamam sertaneja, muitas delas com letras de duplo sentido, de gosto duvidoso e que nada têm a ver com o povo da roça, salvo raras e honrosas exceções.

Eu acompanhava primo Venâncio até o consultório para os curativos e “proseávamos” muito. Ele falava com paixão das letras das canções de que mais gostava. Como já conhecia alguma coisa, fruto dos passeios ao sítio, por influência do primo fui conhecendo músicas imortais de João Pacífico, como “Cabloca Teresa”, “Pingo D’Água”, e Tonico e Tinoco com “Couro de Boi”, “Cavalo Preto”. Outros grandes intérpretes, como Pedro Bento e Zé da Estada, Palmeira e Biá, Texeirinha, Nhô Pai com “Beijinho Doce” e “Cabecinha no Ombro”, Torres e Florêncio, Alvarenga e Ranchinho, Tião Carreiro, Cascatinha e Inhana, além de “Tristeza do Jeca”, composição de Ângelo de Oliveira. Poderia listar um grande número dessas canções que falam da terra, dos animais (principalmente pássaros e gado), dos amores inocentes e cheios de ternura e de algumas tragédias que estão gravadas nos meus arquivos e que resgato vez em quando nas nossas cantorias em reuniões familiares.

O som da viola cala fundo no meu peito e uma saudade imensa me invade como uma doce e leve inocência que deixei para trás, mas que Renato Teixeira, Almir Sater, Rolando Boldrin e alguns outros me ajudam nesse resgate tão feliz.

Primo Venâncio já não está entre nós. Quando de sua partida, as pouquíssimas sombras que conseguia visualizar já haviam desaparecido desde há muito tempo. Homem de grande estatura e muito forte, continuou seu trabalho até o fim. Sua deficiência não o impediu de ser feliz dentro dos limites que a vida lhe impôs. Na nossa maturidade, nossos encontros se tornaram cada vez mais esporádicos. Cada um foi para um lado, minhas primas e meus irmãos casaram-se, nossos pais faleceram, eu fui para a capital. Mas sempre que possível, trocávamos notícias uns dos outros.

Tenho um gosto musical eclético, que vai dos clássicos com grandes orquestras, temas de filmes, MPB principalmente as com poesias que me tocam a alma. Mas a música caipira e o som da viola têm lugar especial no meu coração, graças ao querido PRIMO VENÂNCIO. Talvez ele nunca tenha sabido da importância de sua passagem pela minha vida. A vida na cidade me fez forte, mas a do campo me resgata a ternura.  




TENHO ALMA CAIPIRIA E ME ORGULHO DISSO. Obrigada, primo.







[1] Antônio Massaroto, casado com Maria Piveta, irmã um pouco mais velha de minha mãe.

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