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terça-feira, 25 de outubro de 2011

As quatro Marias

          Influenciamos pessoas e por elas somos influenciados. Isso é certo. Na minha longa e nem sempre fácil caminhada, Deus sempre colocou na minha vida pessoas que me deram a mão, o ombro, e que até mesmo me carregaram no colo para que eu pudesse romper as amarras e vencer os enormes obstáculos que surgiram.
          Felizmente, o relógio do tempo se encarregou de mandar para o esquecimento os momentos amargos, facilitando o trabalho do tear incansável da vida e transformando dificuldades em estímulos, colocando no meu caminho pessoas certas nas horas incertas.
          Elencar nomes e feitos seria muito difícil, eu diria mesmo  impossível, tantas foram as pessoas que me ajudaram a elaborar o tecido do convívio, com seus muitos avessos e arremates. Além disso, minha memória já não me é tão fiel e poderia me levar a esquecer algum nome, o que seria profundamente lamentável.
          O que me leva a falar sobre essas pessoas é a coincidência dos nomes nas distintas épocas e as marcas profundas que suas presenças tatuaram em minha alma. Adotei justamente a cronologia de suas presenças para estabelecer a ordem do meu  relato.

1958 –  Maria Crivellini Rasteiro. Rua do Fico, Araçatuba.

         Dona de casa, costureira, estudiosa e profundamente caridosa no sentido exato da palavra. Passávamos horas conversando sobre todos os assuntos, nos cafezinhos com pão e manteiga que nos oferecia nas tardes quentes, algumas vezes sombrias.
         Todo dia atravessava vagarosamente seu corpo obeso pela rua que separava nossas casas, para levar um caldo ou um chá para minha mãe, que se encontrava no leito, já em estado terminal, vitimada pelo câncer que lhe corroia as entranhas. Tinha sempre uma palavra amiga ou uma desculpa piedosa quando o assunto era a "doença" que acometia a enferma (câncer inexistia em seu vocabulário). Suas palavras acalentavam nossas almas ainda inocentes, seja pela falta de informação, seja pela nossa tenra idade.
          Minha memória tem ainda nítida a imagem dos últimos minutos de minha mãe. Tão-logo aconteceu o passamento, dona Maria saiu silenciosamente do quarto. Já não se  sentia necessária: havia no humilde quarto muita gente para cuidar de tudo. Levou-nos para sua casa, para nos alimentar o corpo e a alma, com seu carinho e movimentos serenos, vagarosos, mas firmes.
          Nos dias que se sucederam, achava sempre um tempinho entre um trabalho e outro para nos aconselhar, ouvir e amparar. Foi ela também que me  ensinou o verdadeiro sentido da Vida além da Vida; respondeu a todas as minhas indagações e me incentivou nas leituras edificantes, fazendo brotar em mim o interesse pelos assuntos do espírito e, o mais importante,  a encontrar as respostas que norteariam minha vida a partir de então.
          Quando ela fez a mudança de plano, eu já estava longe e o meu adeus foi através da prece que, com certeza, ela recebeu feliz. Ficaram na lembrança seus olhos verdinhos, cigarro ao canto da boca, suas as mãos sempre ocupadas, seja na máquina de costura, seja fazendo os arremates, sentada na varanda de sua casa.  Era sua marca registrada.

1968 – Maria Eudócia de Oliveira. Hospital Santana, Araçatuba.

          Conheci-a casualmente. Aceitei o convite de Antenor para acompanhá-lo em uma visita hospitalar, onde Maria Eudócia havia sido internada para ser submetida a uma cirurgia da vesícula. Não vi dificuldade em fazer aquilo pelo meu irmão, pois o Hospital Santana era próximo à nossa casa, e ele nutria verdadeira adoração pela mãe de seu grande amigo Nildemar. Além do mais, havia já bastante tempo que ele insistia em nos aproximar.
          Naquela visita, instalou-se tal confiança entre nós que aquele momento fez surgir uma sólida amizade. Foi um encontro de almas. Tornamo-nos grandes amigas. Mais que isso: fizemo-nos cúmplices nos planos e nas confidências. E nossa amizade evoluiu para muito além daquele dia.
          Nossos encontros eram constantes. Ela vibrava a cada sucesso meu e de Antenor. E, também, segurava as pontas do meu irmão em seus muitos desentendimentos com nosso pai. Coisas de jovem, completava, que aconteciam também no seu relacionamento com Nildemar.
          Foram infindáveis as horas que passamos juntas. Eu adorava repartir com ela as refeições de aroma agradável e sabor inconfundível da culinária sul-mato-grossense, sua especialidade. Dividíamos as ansiedades, as alegrias, as festas improvisadas. Devo a ela meu ingresso  no Sesi como professora, onde acabei fazendo carreira. Separamo-nos quando ela se juntou aos filhos em São Vicente e eu segui minha vida profissional em São Paulo.
          Quando a visitei no litoral paulista, ela   já viúva e com os filhos casados,  vivia na companhia inseparável da asma com a qual conviveu a vida toda. Foi um bonito encontro, mas de despedida, vim saber depois. Quantas recordações! Ficaram indeléveis as marcas de sua respiração ofegante, as faces sempre molhadas pelas abundantes lágrimas que não economizava, quando abraçava alguém que amava.

1978 – Maria José de Lima Bicudo. Zona Leste, periferia de São Paulo.

          O encontro com essa amiga foi no mínimo tramado pelo destino. Ingressei como professora concursada  na recém-inaugurada EMPG “José Maria Whitaker”, onde ela era diretora.
          Nessa época, os concursos eram raros e as contratações, na maioria das vezes, aconteciam por apadrinhamento. Eu, concursada e já com alguma experiência na administração escolar, fui convidada para fazer parte de  sua equipe administrativa. Era uma troca justa: eu ganhava uma nova oportunidade e, em contrapartida, oferecia a retaguarda que lhe garantia a tranquilidade e a segurança para o sucesso no andamento dos trabalhos.
          Seu jeito de mãezona foi muito importante para mim, perdida naquela imensidão de fim de mundo. Preocupava-se com todos e a todos ajudava, mesmo que isso lhe acarretasse problemas.
          Foi ela quem estimulou a compra de meu primeiro apartamento. Soube que haveria inscrição para financiamento na construção de apartamentos populares em São Bernardo do Campo e não titubeou. Além de me incentivar a iniciativa, dispensou-me do trabalho para que eu tomasse as primeiras providências.
          Não fosse ela eu nem teria tomado conhecimento da oportunidade, pois saía muito cedo para trabalhar e só voltava a casa à noite, o que me deixava alheia a tudo o que não fosse relacionado à escola.  Depois de cinco anos estava eu no meu novo apartamento, muito simples mas aconchegante, num enorme conjunto habitacional.
          Guardo boas lembranças dessa querida amiga. Lembro-me de sua alegria na pronúncia carregado nos erres, denunciando sua origem interiorana. E da dificuldade de seu caminhar,  nas festas tantas que promovíamos na escola, tamanhos eram os joanetes que lhe entrevavam os pés.
          Mantemos contato até hoje e ainda acompanho, à distância, seus trabalhos voluntários e suas rezas, superando heroicamente as dificuldades que lhe impõem seus oitenta anos.

1988 – Maria Aparecida Ferreira Rosa. São Paulo

          Pequena estatura, peso um pouco acima da média, passos leves e rápidos,  cabelos cinza-gris sempre muito bem arrumados, olhos e ouvidos sempre atentos a tudo. Assim se apresentava dona Cida quando dirigia com pulso firme, mas tranquilo, os trabalhos da EMPG “Profº  Leão Machado” na Regional do Ipiranga em São Paulo.
          Chegamos a essa escola por remoção e praticamente juntas. E nos afinamos desde o primeiro momento. Eu diria mesmo que foi amor a primeira vista, tamanha era nossa identificação nas idéias e nos métodos de trabalho. Oficialmente sua auxiliar, nossa relação ultrapassava os limites do meramente profissional. Éramos amigas e, como tal, realizávamos um lindo trabalho. Trabalhar sob seu comando foi para mim um grande e prazeroso aprendizado. 
          Ela não se intimidava, nem  com as ameaças vindas de alguns alunos orquestrados por lideranças acostumadas ao descaso com a escola pública, nem com exigências descabidas de alguns servidores. Com muita competência e paciência de monge  mostrou a que veio e em menos de um ano a escola já tinha a “sua cara”. Respeitada e respeitadora, conquistou a simpatia incondicional de todos deixando sua marca registrada na escola e nos corações das pessoas. Na festa que fizemos em homenagem à sua aposentadoria, choramos todos.
          Os 32 anos que dediquei ao magistério foram todos de amor e carinho pela profissão que abracei. Mas o período em que convivi com Da. Cida foi muito especial. Tanto que busquei também minha aposentadoria pouco tempo depois. Já não via mais qualquer sentido em continuar com gestões tão diferentes e em desacordo com o meu ideal de trabalho.
          Guardo em meus arquivos da memória a imagem daquela querida mulher que tanto me ensinou. Felizmente, ainda mantemos contato, mesmo que virtual. Também ela, como eu,  participa ativamente dos trabalhos da Faculdade da Terceira Idade. E também ela, como eu, está sempre presente na vida de seus familiares.
A vocês, Marias, meu carinho e eterna  gratidão.
Geni. 08/2011




terça-feira, 11 de outubro de 2011

Uma experiência ruim

O céu de um azul profundo sem uma nesga sequer de nuvem observa melancólico a imensa bola de fogo sendo tragada pelo mar de águas tranqüilas, vê atentamente o sol desaparecer completamente no horizonte quando o arrebol é substituído pelo cinza gris e paulatinamente pela negritude da noite. Lentamente no lado oposto a dama da noite rompe os obstáculos surgindo majestosa para reinar absoluta na imensidão do espaço sideral.
Com meus pés enterrados na areia agora já morna, o corpo encolhido por causa da brisa fria, assisto o espetáculo extasiada e feliz. Para emoldurar a cena as ondas que quebram mansinhas formam um bordado de renda se estendendo por toda a orla no vai e vem do grande tear operado pela mãe natureza. As gaivotas fazem vistoria com seus vôos rasantes.
Absorta em meus pensamentos observo as embarcações que compõem o quadro. Muito longe os navios atracados e iluminados, pequenos veleiros que chegam e saem num movimento constante. Cantarolo baixinho a canção de Dorival Caymmi “Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer...”  “O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito”.  Ninguém mais que Dorival cantou o mar. Com paixão e amor fala em seus versos sobre pescadores, jangadas, peixes, rainha do mar. Fala de amor, de perdas de alegrias e tristezas que acompanham a vida de quem  ali vive. Seu canto mais parece um lamento, às vezes uma louvação.
Fico pensando na magia que o mar provoca nas pessoas, seus mistérios e segredos. Eu, particularmente sonho muito quando estou nas profundezas percorrendo túneis formados por rochas, embarcações naufragadas ha séculos. Ele me fascina e me amedronta. Imagino sempre encontrar a garrafa com uma mensagem deixada por um corsário aflito. Quando isso acontece me vem à tona uma lembrança recorrente de um quase afogamento. Suo frio ao me imaginar novamente na mesma situação vivida há 50 anos. Aconteceu numa festa que quase acabou em tragédia.
Meu primeiro emprego foi numa grande empresa multinacional. O grupo que trabalhava no escritório era pequeno em sua maioria homens. A empresa ficava ao lado da rodovia longe, portanto da cidade. Anexo a ela foi formada uma bonita chácara com um casarão confortável e bastante amplo. Na frente uma grande piscina cercada por delicados ciprestes. A chácara era frequentada pelos gerentes e respectivas famílias, eventualmente os funcionários eram convidados.
Era fim de ano e a tradicional festa do amigo secreto. Eu, muito tímida e desajeitada estava feliz, pois eram raras essas oportunidades me divertia dançando e observando as brincadeiras na piscina. Não sabia nadar e nem estava em trajes de banho. A certa altura os rapazes já alterados pela bebida resolveram me pregar um susto e sem que eu desse conta me pegaram e atiraram-me na piscina. Fui ao fundo, subia e submergia novamente, tentava pedir socorro, mas não conseguia e o que eu percebia eram o ar me faltando, o barulho ensurdecedor da água nos meus ouvidos e as risadas e gritaria de todos que nadavam.
Não contabilizei o tempo que passou para mim, uma eternidade, um pesadelo. Finalmente uma das meninas percebeu e atirando-se na piscina me agarrou possibilitando-me respirar expelindo a água que havia engolido.
Todos ficaram apreensivos e calados observando a cena. Nem me lembro se me pediram desculpas só me lembro do pavor e da revolta que senti. Com as roupas encharcadas foi levada para casa muito assustada e triste por ter perdido o final da festa tão esperada. Voltamos na chácara algumas vezes, mas nunca mais me aproximei da piscina. O pavor de água ainda me domina. Temporais, alagamentos, afogamentos me dão calafrios.
Depois de passados muitos anos, já na capital entrei para uma escola de natação para perder o medo, mas não obtive muito sucesso. Somente brinco e nado onde posso sentir que a qualquer momento posso colocar os pés no chão.
Já viajei muito em barcos pequenos e grandes, mas meu coração está sempre acelerado nessas ocasiões. Tento disfarçar o medo mas a idéia de um naufrágio me atormenta. “Dorival Caymmi diz em outra canção” É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar “... “O marinheiro bonito, sereia do mar levou”...
Para o poeta tudo é bonito e nas suas divagações fala da morte de maneira como sonho que fatalmente vivenciaremos todos, mas eu prefiro caminhar na praia sentindo as águas do mar beijando meus pés. Colho conchinhas, observo os esportistas, os navegantes, mas não me atrevo enfrentar o monstro que às vezes imagino emergindo de suas águas querendo me levar como naquele dia fatídico. Faço coro às morenas que ficaram à espera de seus amados “Vou rezar pra ter bom tempo, pra não ter tempo ruim”... Assim posso desfrutar da beleza e magia do mar calmo em terra firme com o dia ensolarado. É mais seguro. 

Geni  28-04-2011






terça-feira, 4 de outubro de 2011

Rezas e benzimentos


Coisas da pobreza, da crença ou da fé,
falta de grana ou informação,
a medicina caseira curava até bicho de pé.
As simpatias e as rezas, usadas com emoção,
passavam, com certeza, de geração em geração.
Se minha memória não falha, quero deixar registrado,
embora nos dias de hoje
vão achar muito engraçado.
Emociona-me falar sobre isso,
acho muito bom reviver.
E sem parcimônia ou compromisso,
passo receitas do bem-querer.

Acompanhando os rastros na areia da criança,
que só andava segura pela mão,
um ramo de cipó são joão por um machado era cortado,
cortava também o medo na marquinha  do pé no chão.
Dor de cabeça? tonteira?
três brasas acesas num copo com água era entornado
num pano sobre a moleira;
dizia-se que era sol e num instante ficava curado,
voltando o infante  para a  brincadeira.
Espinhela caída, vento virado? Media-se com barbante
da cabeça à ponta do dedão
e depois de três Aves-Marias, a dor sumia num instante,
acalmando o chorão.
Erva santa maria ou mentruz, há quem não acredita,
mas dentro de um certo tempo, tinham fim os parasitas.
Folha de beladona ou saião, quando aquecida, curava inflamação;
sua flor, linda e branquinha, deixava a pele lisinha.
Capim santo,  erva cidreira ou chá de estrada,  
com um chazinho a criança era acalmada.
Três voltas ao redor da casa, quando a criança nascia,
no colo da mãe ou das tias, evitava o mal de sete dias.
Folhinha de mamona novinha, com azeite aquecido,
cobria o enorme furúnculo,  que não mais ficava doído.

Para queimadura? cataplasma de vela derretida e fria,
demorava um pouco, mas era certa a cura um dia.
Gripe forte? peito cheio? com emplastro de fubá cozido e quentinho,
respirava  melhor o menininho.
Três galhinhos de arruda debaixo do travesseiro
levava embora o quebranto da criança linda e olhar matreiro
que, por causa do mal olhado,
havia chorado o dia inteiro.

Com folhas de fumo curtidas na água canforada
banhava-se o ferimento adquirido todo dia;
picadas de insetos e arranhões
tinham sua assepsia.
Hortelã, poejo, marcelinha,
erva doce, quebra-pedra, manjericão,
arranha-gato, carqueja ou melissa
eram usados em banhos, macerados ou infusão.

É crendice, dizem alguns, bruxaria acham outros,   
mas a mãe pobre  sempre buscava  solução.
No seu quintal ou redondeza,  nativas ou cultivadas,
achava ervas de montão.
Com fé  sem perder a alegria,
via crescer sua cria.
Crescemos fortes e sem trauma,
com algumas cicatrizes.
Mas reverenciamos dona Pina
e bendizemos nossas raízes.

Geni D. Bizzo   FTI    09/2011

Eu professora...Nem sacerdócio, nem sacrifício


formatura - 1965

“Que saudades da professorinha, que me ensinou o Bê  A  Bá...”
No antigo rádio em cima da cristaleira, a canção, na voz de Ataulfo Alves, reforçava meu sonho de estudar para vir a ser um dia essa professorinha e, também eu, deixar saudade no coração dos alunos poetas.
Cidade do interior, década de 1960. As mulheres ainda não disputavam vagas no comércio e na indústria (mesmo porque indústria era coisa rara, um ou outro prédio a servir de referência geográfica). Sobravam empregos como babá, costureira, bordadeira e... Professora, claro.
O sonho de toda família era conseguir para a filha um diploma de professora. Afinal, ela poderia conciliar a vida de casada e o cuidado com os filhos com as aulas no Grupo Escolar, ocupação de apenas meio período. Casar, naquela época, era fundamental. E filha formada saía na frente na conquista de um pretendente.
Eu, como muitas, sonhava com o magistério. Adorava ouvir Nélson Gonçalves quando cantava ”vestida de azul e branco, trazendo sorriso franco no rostinho encantador/minha linda normalista rapidamente conquista...” Enlevada pelo sonho, já me via em meio à criançada, feliz em fazer mil e uma peripécias para tornar o ensino mais agradável. E aconteceu...
Formei-me pela Escola Normal  de Araçatuba sem muitas pompas. De família humilde, os parcos recursos não me permitiram participar da linda festa que aconteceu no clube local. Mas o anel...  Este, sim, passei a ostentar no dedo, presente de um pai orgulhoso que não mediu sacrifícios para poder ver no dedo da filha o símbolo de seu sucesso.
 Sucesso? Conquista? Tudo isso, mas, principalmente, o começo de uma guerra. E que difícil. Naquele tempo não havia concursos regulares para ingresso no magistério. A solução era o candidato se inscrever para substituições nos antigos grupos escolares.  A coisa funcionava assim: Todo dia, religiosamente, íamos à escola e assinávamos o ponto e lá permanecíamos, torcendo para que faltasse algum professor, condição para entrarmos em sala. Só assim receberíamos algum trocado, pois éramos remunerados apenas pelas aulas que efetivamente dávamos.
Às vezes, íamos à escola o mês inteiro sem receber um tostão sequer. Mesmo assim ficávamos felizes: nossa presença no trabalho contava ponto na escala para escolha de aulas ano seguinte ou para quando viesse o ingresso efetivo. 
A partir dessa escala registrada na Delegacia de Ensino e se previamente inscritos, podíamos optar pelas “escolas de emergência”, como eram chamadas as escolinhas rurais. Eram assim chamadas porque seu funcionamento a cada ano dependia do número de alunos que, por sua vez, dependia das colheitas. Muitas vezes, essas escolas funcionavam para atender à força política de um fazendeiro e, nesses casos, eram nomeados muitos professores que “conheciam” pessoas importantes.  Com isso, escolas que deveriam ser de emergência duravam anos a fio, dependendo da força de padrinhos e apadrinhados. E eu não era apadrinhada e muito menos padrinho. Mas esse é outro assunto.
É nesse contexto que começa minha história no magistério. Meu primeiro trabalho foi na Escola de Emergência da Olaria Dona Paula, escolinha rural na região de Araçatuba. Para chegar até ela, tomava um ônibus às cinco horas da manhã e só retornava por volta das três da tarde, isso quando, coisa rara, o ônibus não quebrava.
Era uma escola minúscula, localizada no pasto para o gado. Sua frente dava para uma estrada de terra; ao fundo, uma latrina e um pequeno quintal cercado com arame farpado, para evitar a companhia do gado que mugia sem parar enquanto nos observava curioso.
O número de alunos era pequeno, mas dividido em grupos de 1ª, 2ª e 3ª séries. O quadro negro minúsculo tinha que atender a todos. Material? Não havia. Para o professor, uma apostila com o nome “Ruralismo”, em torno da qual giravam as disciplinas. Para os alunos, alguns caderninhos com lápis e borracha. Ao professor cabia fazer malabarismo entre atender às três turmas, ensinar canto, fazer horta pegando água do poço e, ainda, distribuir a merenda que era feita por uma senhora mãe de aluno das proximidades.
Foi esse meu inicio. Tinha medo de errar, pois era iniciante e estava lidando com seres humanos. Esmerava-me aproveitando a parte da tarde que sobrava para estudar a tal apostila e preparar as aulas. À noite, dava aulas como voluntária no curso de alfabetização de adultos, o que me rendia alguns pontos a mais. O salário? Não me lembro, mas para mim estava ótimo, pois já poderia ajudar meu pai nas despesas da casa.
Eu era feliz e sabia. Éramos 12 professores das escolas da região que o ônibus de linha regular transportava todos os dias úteis (não nos esqueçamos de que, naquela época, sábado era dia útil). Aproveitávamos o trajeto para trocar experiências e material, cantávamos e ríamos muito. Os companheiros de viagem, passageiros dos sítios vizinhos, tinham o maior respeito por nós. Transportávamos frutas, legumes, ovos, leite e até galinhas que ganhávamos dos alunos.
Foi uma experiência incrível. Os alunos e eu fizemos jardim, colhemos verduras, brincávamos de roda, lavávamos a escola aos sábados. Às vezes, eu permanecia na roça no domingo, para participar de festas regionais. Dormia em casa  de um aluno, geralmente  filho do dono de algum sítio.
Mas isso só durou um ano. Em seguida prestei concurso para dar aulas no SESI, onde permaneci por quatro anos., Aproveitei o período para continuar estudando. No Instituto de Educação de Araçatuba fiz curso de aperfeiçoamento (um ano), especialização pré-primária (um ano) e administração escolar (dois anos). Prestei concurso para dar aulas no magistério municipal de São Paulo. Na cidade grande pude, enfim, cursar uma faculdade. Concluí o curso superior em Pedagogia que, embora não fosse o que eu queria inicialmente me abriu as portas para outros horizontes.

Paraninfa - 1ª turma formandos 8ª série
EMPG "Josè Maria Whitaker"

O período de adaptação em São Paulo foi muito difícil. No início, meu irmão e minha cunhada me receberam em sua casa, até que eu pudesse me estabelecer. Tomava duas conduções e andava um bocado até chegar à Zona Leste – EMPG “José Maria Whitaker” que  para chegar às sete horas da manhã, levantava às cinco. Lá permaneci por 13 anos, período em que passei por várias experiências desde aula para as crianças até a direção da escola.
No ano em que ingressei na escola paulistana teve início a fusão dos antigos cursos primário e ginasial para a escola de primeiro grau. Período tumultuado como toda reforma, com várias dificuldades para enfrentar inclusive no tocante à escrituração. Como já tinha alguma experiência adquirida no SESI, fui convidada para trabalhar como secretária na implantação da reforma na escola.
Trabalhamos exaustivamente para que a escola se adaptasse. O grupo docente e administrativo era unido, o que tornava o trabalho agradável. Quantas festas, exposições de arte, campeonatos de música e dança. Muita garra aumentando o prestígio da escola que, nessa altura, já era muito grande. Nas reuniões, que aconteciam aos sábados, discutíamos os problemas dos alunos propondo soluções. Quantos “causos” temos registrado na memória.
 Outras oportunidades de trabalho surgiram e, para aumentar a receita prestei, concurso como professora do o ensino estadual e ingressei em uma escola próxima EEPG “Parque São Rafael“ com acúmulo de cargo legal, trabalhando 12 horas por dia.

Sala de aula EEPG "Profª Anésia Loureiro Gama"

Por meio de remoção, e com o intuito de chegar mais próximo de casa, trabalhei em escola dentro de uma favela de difícil acesso, em curso noturno e períodos diversos, sempre conciliando os dois cargos. Aposentei-me primeiro no ensino municipal EMPG “Professor Leão Machado” depois no estadual EEPG “Profª Anésia Loureiro Gama” em Sbcampo.
Problemas? Muitos. Cansaço? Idem. Mas sempre considerei as dificuldades como “ossos do ofício” e nunca desanimei. Participava de desfiles, festas na escola, concursos de fanfarra e de desenho e de tantas outras atividades em que inscrevia meus alunos e os acompanhava com muito entusiasmo. Como diz Gustavo Ioschipe, jornalista da Revista VEJA, na falta de material melhor utilizava o giz e o cuspe para alcançar os resultados desejados, muito bons com certeza.
Aposentada, voltei para o interior para uma vida mais tranqüila. Vivo modestamente, mas sou muito feliz pelo que tenho e por tudo que realizei.
Foi difícil? Óbvio. Muitas noites insones em que as lágrimas de angústia insistiam em deslizar pela face. Mas também muitos momentos felizes e de satisfação pelo dever cumprido. É claro que muita coisa mudou. O mundo mudou e temos que nos adaptar a ele, mas, insisto, continuo achando que o magistério é uma profissão como outra qualquer. Apenas que, por cuidarmos da formação das pessoas, deve ser exercida como resultado de uma escolha consciente, não por falta de opção. O magistério não é um sacerdócio como querem alguns, mas tampouco deve ser considerado sacrifício.
Hoje tenho certeza que escolhi a profissão certa. Sem saudosismo, mas com a certeza do dever cumprido. E se me perguntam: A senhora foi professora? Respondo sem titubear:
Sou professora com muito orgulho!!!!!!!!!!!!
Geni  01/10/2011