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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

NÚMERO 8


                              

Estava eu aproveitando a vista maravilhosa da sacada do meu apartamento para ver a tarde que caía, trazendo consigo a escuridão da noite. A lua, preguiçosa, fazia surgir dos picos dos pinheiros seus majestosos raios, como que nascendo por detrás do horto.

Em devaneio, pus-me a contar as primeiras estrelas que surgiam.   Meus pensamentos viajavam pelos caminhos do céu, quando percebi: as estrelas pareciam vaga-lumes, num interminável acende-e-apaga. Oras, então, como contá-las?

Pus-me então a pensar. Infinitas como as estrelas no céu são as maravilhas do mundo, que tão poucas conhecemos e, mesmo assim, tão pouco... E, apesar disso, como pode o homem  querer sempre ter o controle de tudo? E, afinal de contas, o que é o infinito?

“Não é dado a uma mente finita conhecer o infinito", está escrito. Se não podemos explicá-lo de maneira objetiva e clara, pelo menos podemos representá-lo por meio de uma forma criada pelo homem.

O símbolo o “oito deitado”, ou lemniscata, numa denominação mais científica, representa o infinito, a eternidade e o potencial divino. A imagem é conhecida desde a antiguidade e a razão de essa curva geométrica especial assumir tal significado é seu traço contínuo, uma forma sem começo nem fim.
(Se fizermos um traço vertical separando a forma ao meio, teremos, ou o ponto central), considerado o portal entre os dois mundos, o físico e o espiritual): um representa a jornada do nascimento até à morte; o outro, da morte ao novo nascimento. A dualidade sempre presente: bem e mal, profano e sagrado, forte e fraco, dificuldades e realizações, dores e prazeres.
Para os místicos, se quisermos encarar a vida de forma centrada, devemos sempre buscar o equilíbrio entre esses dois lados: o que representa o material através da busca dos prazeres imediatos, e o espiritual que transcende, e onde se buscam os valores da alma.
Eu gosto de pesquisar sobre numerologia e acho que têm sentido muitas das respostas que encontro. Tenho o número oito no meu destino. E já que somos número (CIC, RG, fone, CEP, passaporte, conta bancária, placa de carro, numero da casa, até número de rua, como em Rio Claro), acho chique ter um número com tamanho significado. Que bom.
Dizem que traçar o número oito no ar com incenso traz harmonia e energia para pessoas e ambientes. Não custa tentar, é só começar.

7-04-09



Ouro branco



Punhados de algodão formando nuvens ou pedaços de nuvens agarradas nos pequenos arbustos, tudo se confunde no grande tapete verde com arremates azuis, onde parece dar-se o encontro da terra com o céu.
Os pés de algodão enfileirados como soldadinhos em dia de festa formam desenhos geométricos na grande tapeçaria do campo, que mistura a cor branca das maçãs abertas com as flores rosa e com pequeninos botões verdes, que ficarão para a próxima colheita, para formar um cenário bonito para uma abertura de novela.
Os artistas são os catadores de algodão que, alheios a tudo, dão um colorido especial à tela com seus trajes improvisados: calças compridas com camisas de tecido rústico, lenço amarrado na cabeça também coberta com chapéu de palha de abas largas. Um saco grande de juta amarrado na cintura vai sendo arrastado e se torna cada vez mais pesado na medida em que vai sendo enchido com chumaços do algodão macio e de cheiro doce e agradável, o ouro branco.
No carreador[1] são depositados os bornais com a comida trazida de casa na marmita, que já estará fria na hora do rancho (daí o termo boia fria[2]). A moringa de barro, enterrada num buraco para manter a água fresca, fica só com o gargalo de fora.
A moçada cantarola para enfrentar a relva molhada e fria das manhãs e o sol escaldante das tardes do oeste paulista naquele mês de junho. São jovens sonhadores e cheios de saúde. Nada os deixa infelizes. O suor escorre abundante, as mãos feridas doem, mas ninguém se importa, pois todos querem ganhar as apostas: quem termina primeiro a rua[3], quem colhe mais rápido, quem canta melhor... E a tarde chega sem que se perceba.
Agora é só pesar o produto colhido, receber gaita[4] e esperar feliz o retorno na carroceria do grande caminhão. Ninguém se lembra de ter-se levantado às quatro horas da manhã e de que já lá se vão mais de 12 horas na labuta. 
Já é noite. O japonês[5] aposta corrida na estrada de terra vermelha e cheia de buracos e curvas. A poeira impregna todo o corpo e emaranha os cabelos. O corpo moído pelo cansaço e o sonho com um banho morno e uma cama limpa embalam o sono que chega e supera o desconforto dos solavancos do velho caminhão. Acotovelam-se todos para se protegerem do vento forte. O frio intenso corta os lábios e os olhos desprotegidos. Uns dormem, outros fazem piada, outros cantam as músicas caipiras que fazem a trilha sonora de mais um capítulo da novela “Os Boias Frias”[6]. O futuro? Só Deus sabe. Quando a safra acabar, talvez...


[1]Carreador. Caminho mais largo por onde passam as carretas que recolhem as sacas do algodão colhido.
[2])Boia. Comida.
[3]Rua. Espaço entre as fileiras de pés de algodão.
[4]Gaita. Dinheiro, remuneração pelo trabalho.
[5]Japonês. Motorista do caminhão.
[6]Boia fria. Pessoa não assalariada que presta serviço temporariamente e que come a comida fria no próprio local de trabalho.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Esses velhos



Cabelos grisalhos cortados à “escovinha” muito antes do Ronaldo Fenômeno; alto, forte, com dois olhos de um azul infinito que mais parecem bolinhas de gude.  Assim é o meu nono Ottorino. Carinhoso com os netos, principalmente o Agenor, que, por sinal, se parece muito com ele, preenche suas horas de tédio entre umas “branquinhas” e outras, servidas pelo Sr. Nakashima, contando histórias fantásticas, geralmente experiências vividas por ele. Ficamos ansiosos aguardando sua volta do armazém, à espera das deliciosas balas de canela.
Todos os dias, a mesma rotina. Já meio sonolento pelo cansaço aliado ao efeito do álcool, deita-se na grama fofa e verdinha que guarnece a lateral da casa quer ouvir sua “moda” preferida: Chico Mineiro. Cantamos só alguns poucos versos que conhecemos. Ele nos acompanha e se dá por satisfeito. Assim passam as horas até o cair da noite, quando o sono chega, estimulado pela escuridão da falta de luz elétrica.
Hoje, porém, é dia especial!  Início do ano de 1950, eleições para Presidente da República. Para quebrar a rotina, há comício na cidade e esse é um passeio que não podemos perder. Milhares de pessoas amontoadas; as sombrinhas, as bandeirolas e os bonés dão um colorido especial para aquela massa que se movimenta com acenos e gritos. Damo-nos as mãos para não nos perder.
Meu nono me coloca em seus ombros para que eu veja melhor. Meus oito anos não me deixam entender muita coisa, apenas o que ele diz, cheio de emoção:
— É o candidato dos pobres. Será nosso presidente!
A música estridente no alto-falante do caminhão insiste:
—Bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar... e completa:
—Viva Getúlio!
A multidão delira. E eu o vejo. Num jipe aberto, lenço vermelho no pescoço, sorriso largo, faces coradas e gorduchas, óculos redondos, Getúlio Vargas acena para o povo. É um bonito espetáculo. Somos pisoteados e espremidos como sardinhas em lata sob o sol escaldante daquela tarde. Sinto-me cansada, mas feliz. Afinal, além do passeio – coisa rara para nós – ter a oportunidade de participar de tudo aquilo me fazia crescer em importância, mesmo sem entender o que estava acontecendo.
 Agora vem o mais importante: a volta. Como sempre acontece em ocasiões especiais (a última foi numa procissão, que um dia conto) aquela parada obrigatória no Bar “A Boneca” para um sorvete. Prefiro de casquinha, porque aproveito mais. O caldo escuro do coco queimado escorre pelo braço que limpo com algumas lambidas. 
Finalmente chegamos a casa. Exausta, deixo para depois as muitas coisas que tenho para contar. Guardo na retina as imagens bonitas dos velhos: candidato e nono. E na boca o doce sabor do coco queimado... Até hoje.

Geni    07/2011