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terça-feira, 6 de novembro de 2012

­­­­UMA HOMENAGEM À GENI.


Corria o ano de 1942. Tempos difíceis. Na Europa, Hitler encetava o cerco a Estalingrado, batalha que ficou conhecida como a maior e mais sangrenta de toda a História. Na América do Norte, o ataque a Pearl Harbor provocara a entrada dos Estados Unidos na frente contra os Súditos do Eixo. No Brasil, os ares não eram mais amenos. Um acidente automobilístico imobilizou Getúlio Vargas por quinze dias, durante os quais permaneceu totalmente incomunicável, gerando rumores de que uma pancada na cabeça havia comprometido suas faculdades mentais e antecipando movimentos conspiratórios que abreviaram o final do Estado Novo.
Mas não só de tragédias vivia o mundo. Luzes se acendiam no final do túnel, pelo menos no campo das artes. Aquele foi o ano do nascimento de celebridades, como Paul McCartney, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tim Maia entre outras. Destas, a mais importante, e que a nós interessa diretamente, nasceu na madrugada do dia 28 de setembro.
Num casebre do bucólico interior da cidade de Araçatuba, um jovem casal aguardava ansiosamente a chegada do segundo filho. Um homem, com certeza, torcia principalmente o pai aflito, já que o primeiro rebento, nascido há pouco mais de um ano, havia sido uma menina. Mas não foi desta vez que o destino lhe concedeu um varão que perpetuasse o nome da família. Se a angústia da espera esgotou-se no nascimento, a expectativa do rebento macho não se confirmou. O que veio ao mundo naquela madrugada fria foi uma menininha, com seus parcos cabelos dourados como a geada formada pelos cristais de gelo que cobriam a vegetação e embelezavam a paisagem.Geni. Essa foi a escolha do pai para o nome da menina. Deolinda, embora paulista da gema. Seu nome, aliás, foi uma das tantas idiossincrasias do pai, já comentadas em verso e prosa.
Os dias transcorriam serenos para aquelas crianças, dias que se converteram em anos. Se tranquilos para os meninos, eram tempos de grande apreensão para os pais. O café, principal suporte econômico para a região, dava sinais de esgotamento e já era visível o movimento dos cafeicultores em direção ao Norte do Paraná.  A quarta gravidez fez aquele chefe da família, já desgostoso com estilo difícil de vida que levava, tomar a decisão de engrossar as estatísticas do êxodo rural e partir para a cidade, mulher e filhos a tiracolo.
Na cidade, aquela pequena menina já ajudava nas lides da casa, principalmente nos cuidados com os irmãos mais novos. Mas foram tempos tranquilos. Nas suas próprias palavras, a vida era simples nas brincadeiras na rua de terra vermelha, na casa sem luz elétrica e nenhum conforto, nas balas de tostão do nono, na água retirada do poço, nas missas todos os domingos, nas verminoses, conjuntivites, berebas, e todas as doenças comuns na infância, no aconchego da grama verdinha das noites enluaradas e salpicadas de estrelas...
Mudança de endereço, nova casa, se assim podia-se chamar aquelas quatro paredes cobertas de telhas francesas, onde estava tudo por fazer, da cozinha à latrina, passando pelo chuveiro e pelo piso de tijolos expostos. Os folguedos de criança-adolescente foram cedendo vez às atividades domésticas. Além dos cuidados com os irmãos mais novos, ainda existia o vaivém das trouxas de roupa que a mãe lavava para fora numa tentativa de auxiliar na economia doméstica; o buscar dos restos de comida no centro da cidade para alimentar o porco que engordava no fundo do quintal; a arte de homogeneizar a cera e o vermelhão diluídos em gasolina aquecida no fogo para brilhar o piso, agora de cimento vermelho; o cuidado com os irmãos e, ainda, nos finais de semana, o auxílio ao pai nos trabalhos de oferecer à casa um mínimo de habitabilidade.
A saúde frágil da mãe foi um marco na vida da Geni. E, à medida que se agravava o estado de saúde de Dona Pina, mais clara ficava a mudança do papel daquela menina no teatro da família: mais ela saía de coadjuvante para protagonista; mais ela deixava de ser a ajudante da mãe para assumir definitivamente o papel de dona de casa, o que acabou acontecendo com a viagem que, depois de muito sofrer, a mãe empreendeu para o Oriente Eterno. E dificilmente seria diferente. A morte prematura produzira naquele lar um viúvo ainda jovem, pai de seis filhos, pedreiro por profissão, cujos parcos recursos, aliados aos traços de sua cultura, tornavam impensável qualquer iniciativa de se contratar uma pessoa a soldo para auxiliar nos trabalhos domésticos.
Geni acatou seu destino, mas não podemos dizer que o tenha aceitado totalmente. Aos 16 anos, aproveitando a abertura de aulas no período noturno, retomou os estudos. Assim que pôde, foi em busca do sonho de escrever sua própria história e ingressou na Nestlé. Sonho efêmero. Sua ausência nos cuidados da casa provocou a ira do pai, dado a arroubos de cólera, que transformou sua vida num verdadeiro inferno e a fez sucumbir, deixando o emprego para retornar aos cuidados com a casa.
Concluídos os estudos, diploma de professora primária na mão, tentou novamente sair em busca de seus sonhos, e foi trabalhar como professora na Olaria da Paula, na zona rural. À noite, dava aulas de alfabetização de adultos. Mas não seria ainda desta vez. Como não foi o emprego como professora na Cesp no período de construção da Usina de Jupiá. Emprego ambicionado por qualquer professora primária da época, dele teve que declinar, tamanho era o fuzuê que se formava toda vez que ameaçava deixar os afazeres domésticos para cuidar de sua própria vida.
Mas milagres acontecem. E ele veio de cima. Não do céu, mas do Norte. Mais precisamente, do Nordeste. Mais precisamente, ainda, de Fortaleza, na pessoa de Maristela, com quem o pai se casou numa aventura que mereceu outra crônica. Desta vez existia outra pessoa para assumir o papel que lhe fora reservado até então. Agora, nada mais a segurava. Contava já trinta anos quando, vitoriosa em prova de seleção para o magistério primário em São Paulo, seguiu de mala e cuia para a Grande Cidade. Desta vez sem volta. E lá foi a Geni, finalmente, escrever sua própria história.
Tudo muito difícil, escola de periferia, barra pesada, problemas de todos os gêneros. Mas, pela primeira vez, os problemas eram dela, e a ela competia resolver. E o fez com galhardia. O acúmulo do magistério no município com uma cadeira no Estado engrossou sua conta bancária. Daí, o primeiro apartamento, financiado a perder de vista, mas seu; o primeiro carro. Tudo era novidade, tudo era comemorado como uma grande conquista, tudo era motivo de orgulho de ver que, yes, ela podia!

símbolo do seu time

Sem nunca abandonar os estudos, os cursos de aperfeiçoamento de que participou acabaram por guindá-la à condição de diretora. E foi nessa época, salvo engano, que conheceu Da. Miltes e o Centro Espírita Obreiros do Senhor, em São Bernardo do Campo, onde foi obreira útil e dedicada, lembrada até hoje com muita saudade pelos colegas que lá ficaram quando mudou-se para Rio Claro. Só o trabalho como voluntária no Obreiros daria um outro texto, tamanha foi a dedicação com que se entregou à arte de servir ao próximo e ao Criador.
Já aposentada dos dois empregos e por incentivo da irmã, foi-se juntar a ela em Rio Claro. Espírito inquieto, não se quedou no dolcefarniente da aposentadoria. Para além da presença constante no convívio com as irmãs,sobrinhas e madrasta, ingressou na Faculdade da Terceira Idade, em que é uma das mais assíduas e dedicadas colaboradoras, principalmente nas oficinas de literatura de que participa. E, como a confirmar o oráculo que descreveu seu destino, voltou às suas origens. Hoje dedica-se, entre outras coisas, a cuidar dos irmãos com o mesmo desvelo com que o fazia quando éramos todos pequenos.
Essa é Geni, nossa irmã, amiga e mãe adotiva. E é para essa guerreira e vencedora que nós, neste momento, tiramos o chapéu.

28.09.2012