O Palmeiras é como uma flor: quanto mais esmagada mais perfume exala. Essas foram as últimas palavras que papai disse a seus sete filhos ao redor do leito de hospital, num misto de lucidez e semi-consciência entrecortadas com palavras desconexas na boca semi-aberta, olhos parados e mãos frias, quando suas forças já o abandonavam. Foi assim , rodeado pela esposa, filhos , noras , genro e alguns netos, que ele partiu para uma outra vida. Onde, com certeza , nos encontraremos.
Silvio Bizzo. Esse é seu nome . Filho de imigrantes italianos que , como outros tantos, fugiam da guerra e buscavam uma vida melhor. Também como tantos outros, se alojou nas fazendas cafeeiras.
Falar sobre a vida de colonos é chover no molhado. O tema já foi – e ainda é – muito explorado pelos escritores e dramaturgos . De família numerosa, papai era o mais velho . Garoto muito inteligente, mas sem oportunidade de estudo (as poucas escolinhas rurais ficavam muito longe e o trabalho não o permitia freqüentá-las).
Fez só a primeira série escolar. Apesar disso, tinha caligrafia perfeita e profundo respeito pela ortografia. Após o almoço como bóia fria, sentava-se debaixo de um pé de café e, com folhas novas e finas do cafeeiro à boca, tirava sons belíssimos, auxiliado pelo ouvido afinadíssimo. Esse gosto pela música desde muito cedo levou-o a procurar alguém que lhe ensinasse as primeiras notas. À noite , sob a luz de lampião e depois de um dia exaustivo, aprendia a escrever e solfejar .
Com muito sacrifício, comprou uma clarineta. Com quatro filhos pequenos à época, resolveu alçar vôos maiores. E mudou-se para a cidade . Ingressou como músico na “Banda Municipal de Araçatuba” para que o pequeno ganho lhe permitisse, durante o dia, aprender o ”ofício” de carpinteiro e pedreiro .
Foi assim, intercalando serviço pesado e bruto que lhe calejava as mãos com as “retretas” no coreto da praça municipal, que ele pôde dar aos seus filhos uma condição que não havia tido: estudar . Com sacrifício, comprou um saxofone. Já agora, além da banda, tornou-se músico de uma pequena orquestra . Os Guanabaras, esse era o nome.
A vida de sacrifício continuava, apesar do prazer que a música lhe proporcionava. Amava chorinhos, dobrados, sambas-canção. E o fox-trote. Ah!, os fox-trotes. Simplesmente lindos. Os baixos salários não lhe permitiam viver somente da música. O sacrifício era muito grande. As mãos calejadas pesavam no instrumento leve e delicado .
A vida ainda uma vez foi dura com ele. Um câncer levou sua companheira precocemente, depois da agonia de muitos dias presa ao leito . Viu-se sozinho com os filhos menores , orçamento apertado com os pesados gastos. E a solidão pesada da falta de sua querida esposa.
Deu a volta por cima mais uma vez . Aos poucos terminou sua casa construída aos domingos e com sobras de materiais que ganhava. Seus filhos, formados pela escola pública, conseguiram um lugar ao sol e puderam lhe proporcionar uma velhice um pouco mais tranqüila junto com sua nova esposa, que lhe deu mais um filho. Sua alegria era vibrar pelo seu time do coração e exibir com orgulho as fotos de seu tempo de músico dando brilho no saxofone, que guardamos com muito carinho .
Quando nos encontrávamos no espaço apertado da mesma casa construída com muito suor, nos acotovelávamos, sem nos importarmos com a falta de conforto. O importante era o carinho que sentíamos uns pelos outros. Nos entregávamos às recordações boas ou tristes , às dificuldades e alegrias . Gostávamos de cantar, embora nenhum filho tenha seguido seu exemplo na música (hoje um bisneto resgata esse passado ).
A família cresceu muito. Alguns se foram. Mas continuamos unidos e cheios de lembranças, passando para nossos filhos e netos as experiências que vivemos ao lado de nosso pai. Amor pelo trabalho , dedicação , religiosidade e sobretudo honestidade – seu lema de vida – estão presentes nas frases que nos dizia freqüentemente e que repetimos sempre : “O saber não ocupa lugar.” “Nunca diga eu sei. Diga estou aprendendo.” “O mundo é enganador.” Nunca tenha vergonha de sua condição.” E tantas outras, presentes em nossas vidas e que nos dão a certeza de que nosso pai foi e é , sem dúvida , uma lição de vida .