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terça-feira, 17 de maio de 2011

Meu Pai uma lição de vida


O Palmeiras é como uma flor: quanto mais esmagada mais perfume exala. Essas foram as últimas palavras que papai disse a seus sete filhos ao redor do leito de hospital, num misto de lucidez e semi-consciência entrecortadas com palavras desconexas na boca semi-aberta, olhos parados e mãos frias, quando suas forças o abandonavam. Foi assim, rodeado pela esposa, filhos, noras, genro e alguns netos, que ele partiu para uma outra vida. Onde, com certeza, nos encontraremos.

Silvio Bizzo. Esse é seu nome. Filho de imigrantes italianos que, como outros tantos, fugiam da guerra e buscavam uma vida melhor. Também como tantos outros, se alojou nas fazendas cafeeiras.

Falar sobre a vida de colonos é chover no molhado. O tema foi – e ainda é – muito explorado pelos escritores e dramaturgos. De família numerosa, papai era o mais velho. Garoto muito inteligente, mas sem oportunidade de estudo (as poucas escolinhas rurais ficavam muito longe e o trabalho não o permitia freqüentá-las).

Fez a primeira série escolar. Apesar disso, tinha caligrafia perfeita e profundo respeito pela ortografia. Após o almoço como bóia fria, sentava-se debaixo de um de café e, com folhas novas e finas do cafeeiro à boca, tirava sons belíssimos, auxiliado pelo ouvido afinadíssimo. Esse gosto pela música desde muito cedo levou-o a procurar alguém que lhe ensinasse as primeiras notas. À noite, sob a luz de lampião e depois de um dia exaustivo, aprendia a escrever e solfejar.

Com muito sacrifício, comprou uma clarineta. Com quatro filhos pequenos à época, resolveu alçar vôos maiores. E mudou-se para a cidade. Ingressou como músico na “Banda Municipal de Araçatuba” para que o pequeno ganho lhe permitisse, durante o dia, aprender o ”ofício” de carpinteiro e pedreiro.

Foi assim, intercalando serviço pesado e bruto que lhe calejava as mãos com as “retretas” no coreto da praça municipal, que ele pôde dar aos seus filhos uma condição que não havia tido: estudar. Com sacrifício, comprou um saxofone. Já agora, além da banda, tornou-se músico de uma pequena orquestra. Os Guanabaras, esse era o nome.

A vida de sacrifício continuava, apesar do prazer que a música lhe proporcionava. Amava chorinhos, dobrados, sambas-canção. E o fox-trote. Ah!, os fox-trotes. Simplesmente lindos. Os baixos salários não lhe permitiam viver somente da música. O sacrifício era muito grande. As mãos calejadas pesavam no instrumento leve e delicado.

A vida ainda uma vez foi dura com ele. Um câncer levou sua companheira precocemente, depois da agonia de muitos dias presa ao leito. Viu-se sozinho com os filhos menores, orçamento apertado com os pesados gastos. E a solidão pesada da falta de sua querida esposa.

Deu a volta por cima mais uma vez. Aos poucos terminou sua casa construída aos domingos e com sobras de materiais que ganhava. Seus filhos, formados pela escola pública, conseguiram um lugar ao sol e puderam lhe proporcionar uma velhice um pouco mais tranqüila junto com sua nova esposa, que lhe deu mais um filho. Sua alegria era vibrar pelo seu time do coração e exibir com orgulho as fotos de seu tempo de músico dando brilho no saxofone, que guardamos com muito carinho.

Quando nos encontrávamos no espaço apertado da mesma casa construída com muito suor, nos acotovelávamos, sem nos importarmos com a falta de conforto. O importante era o carinho que sentíamos uns pelos outros. Nos entregávamos às recordações boas ou tristes, às dificuldades e alegrias. Gostávamos de cantar, embora nenhum filho tenha seguido seu exemplo na música (hoje um bisneto resgata esse passado).

A família cresceu muito. Alguns se foram. Mas continuamos unidos e cheios de lembranças, passando para nossos filhos e netos as experiências que vivemos ao lado de nosso pai. Amor pelo trabalho, dedicação, religiosidade e sobretudo honestidade – seu lema de vida – estão presentes nas frases que nos dizia freqüentemente e que repetimos sempre: “O saber não ocupa lugar.” “Nunca diga eu sei. Diga estou aprendendo.” “O mundo é enganador.” Nunca tenha vergonha de sua condição.” E tantas outras,  presentes em nossas vidas e que nos dão a certeza de que nosso pai foi e é , sem dúvida, uma lição de vida.


Rio Claro, 27 de Julho de 2004

EU E ELA

 Ondas gigantescas batem na parede transparente e, ao descerem, compõem uma forte correnteza em direção ao gargalo da enorme cratera, por onde se escoam as águas.
Observo entre assustado e curioso o lindo espetáculo. Folhas enormes da renda portuguesa se contorcem, varrendo o chão encharcado. Aves, acostumadas como eu a alçar pequenos vôos, cruzam os espaços macios da “enorrrrrrrme...” residência. Neste momento, me imagino planando por sobre as árvores, sentido o frescor agradável da atmosfera lavada pela chuva torrencial. Mas não posso ir além. Embora seja livre num espaço relativamente grande, minha liberdade é limitada. Não tenho condições de sobrevôo e não mais conseguiria viver sem a proteção dos humanos.
Lembro-me de que sou uma ave da família das calopsitas. Meu nome é THEO. Sinto-me um pequeno humano, dividindo espaço com uma companheira que, humana, sente-se uma enorme calopsita. Nossa história é bonita. Cheguei nesta casa num momento difícil e de muita tristeza. Fui trazido como presente por um parente dela, para ser seu companheiro divertido e leal. E cumpro meu papel. Entendemo-nos muito bem. Às vezes até pelo olhar. Nossas vidas são tão semelhantes que até nos confundimos.
Meus antepassados são da Austrália. Nossa migração só começou a acontecer em meados do século XIX.  Foi quando os antepassados de minha companheira também partiram em busca de novas terras. Foi nessa mesma época – um pouco depois, talvez – que tomaram o navio na Itália rumo a este país maravilhoso em busca de dias melhores.
E as semelhanças não param por aí.
Somos divertidos, leais, inteligentes, nos adaptamos muito bem às situações adversas; sentimos fome, medo, frio, alegria, dor, tristeza, aceitação, rejeição.
Eu, como não conheço a vida lá fora, me sinto um “lorde de plumas”. Sou bonito, com penas coloridas e a cara vermelha, parecendo maquiadas com cuidado. Vivo numa gaiola aberta, colocada bem no alto de uma escadinha, que uso como academia, num sobe e desce constante. Tenho total liberdade para ir e vir na residência. Adoro ser tocado, acariciado, mas só quando me sinto confiante. Retribuo da mesma forma. Sou dócil e afetuoso, aprendo com facilidade as músicas que me ensinam.
Ela, ah... Ela também. É alegre, divertida, elegante, gosta de cantar, é sonhadora. E, como eu, embora se diga livre, não o é verdadeiramente. Vive prisioneira dos medos, tensões, aflições de como conduzir a vida. Tem medo do que possa lhe acontecer, embora se afirme com muita fé e a tem, às vezes fraqueja e se torna prisioneira de preconceitos, de ansiedades, de julgamentos.
Quando pode “voar” com seu anjo de pés de borrachas, o faz de maneira tacanha, com os vidros fechados e embaçados, sentindo a cada passo o pavor de alguma aproximação. Angustia-se, tem medo de não dar conta do recado quando a dor ou a necessidade se aproximarem. Como enxergar a vida diante da escravidão materializada na presença do medo, configurando a vida super-avaliada nas necessidades criadas pela ansiedade?
Se eu pudesse verbalizar, diria:* “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai Celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?”
Qual a diferença entre as necessidades do Homem e das aves? Está em uma palavra: Consciência. É ela que dá ao homem a dimensão do tempo e do espaço, das suas necessidades, de sua finitude. Isso não acontece com nenhum outro ser, nem mesmo aves, como eu.
Claro, sei que as necessidades dos humanos são maiores que as nossas. Como sei que necessidades geram ansiedades, medos, que os aprisionam cada vez mais. Mas, mesmo assim, procuro transmitir com meu olhar o que penso: confie, seja firme e forte para que, depois da “chuva” de preocupações e de problemas, a “atmosfera da alma” esteja lavada e protegida com o conforto que Deus nos concede.
Continuo observando a chuva, enquanto ela dorme recostada no sofá. Talvez sonhe livre e, voando nas asas livres de um sonho, tenha a consciência do que nos diz o filósofo Sêneca “A vida é feliz”, E sem ansiedades e preocupações, sua vida irradiará alegria, tranquilidade e bem-estar perenes.
E que ela, finalmente, possa perceber que às vezes precisamos dar uma pausa nas nossas angústias para despreocupadamente vivermos o que é simples, como a vida das aves.          * Matheus: 6.28           Geni  23/08/2010

A eterna procura

A eterna procura

Uma carta de amor

Saudade imensa...
Onde anda você? Em vão a procuro nas minhas incansáveis rondas pela cidade grande, caminhando por entre os archotes modorrentos na fria madrugada do outono que se prolonga.
O pisca-pisca do neon embaralha minha visão, cansada das noites insones. Percorro as ruas e becos que não dormem... Observo olhares ainda cheios de malícia e de desejo, na maquiagem exageradamente carregada das mulheres que terminam seus turnos. Vejo homens, paletós nos braços, com o cigarro entre os dedos amarelados pela nicotina que impregna a pele; mais adiante encontro o transformista que, vencido pelo cansaço da noite longa e exaustiva, vai-se desfazendo da montaria antes mesmo de chegar ao carro... Mas nada, nem sombra de sua silhueta, aquela que trago na lembrança e que teima em me torturar.
E eu continuo na maratona incansável à sua procura. Nos caminhos e descaminhos enfileiram-se arranha-céus e mansões com jardins bem cuidados, contrastando com favelas superpovoadas, a exibir a miséria colorida. O vaivém das deselegantes meninas e madames com trajes impecáveis, trânsito desordenado, ambulantes que gritam os seus produtos, pobres miseráveis mendigando pão, nada me é indiferente. Resta a esperança, que insiste em não morrer. Quem sabe em algum olhar a encontro.
Não a vejo nem mesmo nas choupanas distantes, onde pequerruchos seminus e barrigudinhos, donzelas de olhos brilhantes e já cheios de malícia, homens e mulheres nas portas com seus radinhos de pilha influenciados pelos efeitos da globalização vivem suas miseráveis vidas... Inútil. Não poderia encontrá-la logo ali, onde a beleza da paisagem é sufocada pela ambição do ser humano.
Vencida pelo cansaço e pelo sono, sonho com o tempo em que compartilhávamos nossas fantasias. Saudade. — Você se lembra das nossas caminhadas pelo milharal dourado, do perfume doce das espigas maduras? E das trepadeiras de buchas, matérias- primas para nossos exércitos na luta contra o mal, você na garupa do alazão que eu cuidadosamente fizera para nossos longos passeios?
Não... Você não pode ter-se esquecido do clarão da lua cheia – Dama da Noite –, quando observávamos o bailado das estrelas cadentes, nem do grande queijo comido pelo ratão do banhado, no quarto minguante.  Impossível esquecer os dias quentes e ensolarados, quando nuvens de algodão, em seus movimentos constantes, formavam lindos castelos onde iríamos morar um dia? Como não lembrar-se das viagens à praia e de nossos folguedos, rolando sem censura na areia beijada pelas rendas de espuma da água fria a sufocar nossos desejos? 
 Lembra-se?
Ah! Onde foi que nos perdemos? Onde anda você, INOCÊNCIA?
Volta para mim. Volta para esta alma indefesa e frágil, que sofre com sua ausência diante deste conturbado mundo.
Faça-me voltar ao tempo em que andávamos juntas...

Geni Bizzo  08-10-2010


terça-feira, 10 de maio de 2011

Apresentação

Escrever é arte que depende das viagens às vastas salas das memórias, sejam elas reais ou fictícias. Como quer Santo Agostinho, é a memória que esconde o que pensamos e tudo o que toca os nossos sentidos: “aquilo que não pode ser sepultado no esquecimento”. É arte que está associada à experiência e à reflexão, ao trabalho com a linguagem, à dura luta com as palavras, como explicam os versos de Drummond: “lúcido e frio,/apareço e tento apanhar algumas/para meu sustento num dia de vida.”
É exatamente isso que Geni Bizzo faz: com toda lucidez busca palavras que deem conta de expressar suas invenções, as histórias vividas e as fabuladas. E o faz com o cuidado do ourives, lapidando-as para extrair delas o brilho que seduz o olhar do leitor. Por esse motivo, incentivei-a a manter um blog pessoal, aliás, meu incentivo é para que publique um livro, mas o blog já é o começo dessa jornada entre letras e emoções.
Geni Bizzo se lança à aventura de publicar na web, abandona o cais - lugar seguro - e mergulha nesse imenso mar de ficções formado por escritores consagrados e anônimos. Sorte dos leitores, pois ela tem o que dizer, tem conteúdo e sabe expressá-lo com palavras.

Sandra Baldessin