Santa Terezinha dá nome ao hospital e maternidade de Araçatuba, palco das cenas que marcam o início de nossa narrativa. Calor abrasador do mês de dezembro, dia vinte e sete, dezesseis horas, 1976. Mal acomodados em cadeiras desconfortáveis, única mobília em uma minúscula sala de espera sem nenhuma decoração além do retrato da enfermeira carrancuda fazendo sinal de silêncio, como a repreender o quieto ruído de nossa angústia. Éramos apenas Hirata e seu pai, "dichan", como o chamávamos, e eu, futura avó postiça. Olhávamos atentos a um pequeno quadro de luzes no alto da grande porta de entrada da sala de cirurgia. Numa época em que não existia ultrassom, o sexo do bebê era conhecido apenas no momento do parto e anunciado pela cor da luz que se acendia no alto da porta. Era ela, assim, que nos daria a resposta que tanto queríamos.
Finalmente é acesa uma luz. Vermelha, a indicar a chegada de uma menina. Assim veio ao mundo Carolina, uma linda mestiça com bochechas vermelhas, cabelos pretos e espetados, olhos bem puxadinhos, próprios dos orientais. Eram seis horas da tarde. Na sala de cirurgia, o som baixinho da Ave Maria era quebrado pelo choro da pequenina que chegara ao mundo desanuviando a tensão de todos que a aguardavam.
Dichan, que mal pronunciava algumas palavras em português, mostrava no tímido sorriso a alegria da chegada de neta tão querida. A primeira filha do casal Nair e Hirata chegava para a alegria de toda família, e eu ali, incorporando definitivamente o papel de avó postiça que me reservava. Foi assim que acompanhei a trajetória dessa garota que mostraria para todos nós o verdadeiro sentido da luta pela vida.
Boazinha e dorminhoca cresceu comportada e chamava a atenção por sua beleza discreta. Com a chegada de sua irmã Renata, um ano e três meses depois, não só dividia com ela as atenções de todos como tomou para si a responsabilidade de irmã mais velha. Sempre juntas nas brincadeiras, nos passeios, na hora do lanche ou de dormir, ditava as normas, pois já se mostrava independente e voluntariosa, mas muito disciplinada, sua herança nipônica.
Passaram-se os anos. As meninas cresciam saudáveis, inteligentes e muito bem educadas pelos pais. Sua mãe as vestia com roupinhas lindas, fitas nos cabelos de Maria Chiquinha, combinando com os vestidos sempre muito bonitos.
O Parque Infantil, aos quatro anos, e depois a escola primária faziam parte da rotina. Com a mãe trabalhando fora, havia sempre alguém para os serviços domésticos e os cuidados com elas. Contavam também com a atenção e o carinho das avós, principalmente da vó Maristela, que sempre socorria nas horas de aperto ou em caso de doenças comuns na infância.
Foi então que aconteceu a mudança brusca e radical: de cidade, de escola, de amigos... E, também, a difícil adaptação à distância dos familiares, imposta pela transferência para Rio Claro, novo local de trabalho dos pais.
Os pais enérgicos, mas muito dedicados, tudo faziam para que as meninas tivessem conforto, carinho e orientação segura. Aulas de balé, escotismo, escola dominical faziam parte do dia a dia. A adolescência chegou e os poucos passeios eram feitos com os pais em viagens geralmente para visitas a familiares. As amigas eram poucas: as duas meninas se bastavam.
O ensino médio, as apreensões com o futuro, mudança de escola, as dificuldades e as diferenças que agora se acentuavam. Carolina gostava de exatas e sonhava ir para a cidade grande; Renata gostava de humanas e tinha outros sonhos. Resultado: embora procurassem estar sempre unidas, as duas amigas acabaram por se separar e cada uma seguiu seu rumo.
São Paulo, Rua Tamandaré. O cursinho preparatório aos exames vestibulares. O pensionato, as sofridas privações. A adaptação, sua e dos pais que, a partir de então, viveriam separados da filha querida. Tudo isso, aliado ao gostinho da independência que se anunciava, fez de Carolina uma grande guerreira. Sem que ninguém pudesse imaginar, a tudo isso se impunha como uma preparação para o enfrentamento das borrascas e dos sofrimentos que a frágil garota viria a enfrentar na curta travessia de sua vida.
Estudiosa, determinada, perseguia seu sonho de conseguir vencer qualquer obstáculo para atingir seus objetivos. Enfim, a faculdade – curso de Ciência da Computação na PUC – a formatura, os estágios, o primeiro emprego, o primeiro apartamento, o primeiro carro, o primeiro amor...
A elegante executiva era arrojada e autossuficiente. Mas cedia à tentação dos telefonemas diários para a mãe. Fosse para pedir sua opinião, comunicar uma decisão ou simplesmente para um colinho virtual. E se impunha frequentes visitas ao lar, quando mãe e filha passavam horas a tricotar, como diziam elas. Sua mãe e grande confidente ficava literalmente com o coração nas mãos quando a filha pegava a estrada à noite para retornar à capital. Carô, ao contrário, não tinha medo. Era expert no trânsito, em congestionamentos, nos frequentes alagamentos, enfim, em todos os transtornos que infernizam a vida das pessoas na cidade grande. Indiferente, continuava à busca de realizar seu sonho, MBA no Canadá. E, para isso, se preparava muito e muito...
Enquanto isso, sua irmã também concluiu seu curso superior, casou-se e foi morar em Brasília, terra de seu marido Vinicius, e repartiu com Nini – assim Carô era chamada pela irmã – a alegria da chegada do filho Miguel, 24 de Maio de 2008. Agora Nini seria também a “dinda” do fofucho garotão de olhos azuis.
Mas o grande trem da vida segue seu curso e, no trajeto, as belezas, os obstáculos, a mudança de paisagem são inevitáveis.
No mesmo ano da chegada do Miguel, quatro meses depois, após um exame de rotina, a paisagem se modificou e nuvens escuras toldaram os céus. Fato novo: fora detectada a presença de um câncer raro, do tipo neuroendócrino. Ele mesmo, presente sem pedir licença, sem dar qualquer sinal, por mais simples que fosse, dava início ao calvário que galhardamente essa garota percorreria durante um ano.
Os alicerces familiares foram abalados terrivelmente. Comoção geral, o pesadelo, o sonho horrível que não acabava. Mas Carô desarmava a todos com sua galhardia e coragem em enfrentar mais uma luta, mesmo que a pior de todas. Foi submetida a uma cirurgia e emocionava a todos, inclusive a equipe médica, não somente com sua esperança, mas também pela certeza da cura.
Durante a convalescença retornou à casa dos pais e, a partir daí, foram incontáveis as idas e vindas para São Paulo para os procedimentos quimioterápicos e exames específicos. Seu pai, com a paciência oriental, era o calado motorista que satisfazia a todos os desejos nas infindáveis paradas. Como foram longos os dias! Nesse período, foi fundamental a presença constante de familiares e amigos. Uma grande corrente foi formada, pois os elos são fortes e não houve um só dia que não contasse com presença física ou telefonema de alguém.
Nunca a vimos chorar e, se o fazia, era às escondidas, assim como todos nós. Descrever o desvelo dos pais é impossível em tão curto espaço. Mesmo com o coração dilacerado, tudo fizeram para que a rotina se mantivesse driblando a dor naquele “faz de conta que tudo está bem”. À sua mãe, só faltava carregá-la no colo, como nos seus primeiros anos de vida. Dormiam de mãos dadas, faziam confidências, riam e discutiam as últimas novidades sobre os tratamentos que Carô pesquisava diariamente na Internet. De família cristã, não faltaram as orações. O Evangelho foi uma constante no lar, fortalecendo os laços espirituais. Ao mesmo tempo em que nos agarrávamos à esperança, aceitávamos os desígnios do Pai e fomos trabalhando o coração para o inevitável.
Dia 26 de Setembro de 2009, pouco antes das quatro da tarde, cercada de familiares e amigos, despediu-se de nós para mudança de plano. Nini para sua irmã, Dinda para o pequeno Miguel, Carô para os familiares, Carol para os amigos, ou simplesmente Carolina, partiu nessa viagem “antes do combinado”, como diria o poeta. Para nós somente umas férias, uma vez que temos a certeza do reencontro.
Na sala do Jardim das Palmeiras coberta de flores, a comoção foi geral quando seu tio e pastor Silvinho, como coadjuvante que foi durante toda a infância, numa despedida singela, fez um breve relato de sua vida ressaltando o amor incondicional dos pais e irmã.
Campos de Jordão 01//01/2008 |
Mas a vida tem que continuar, embora saibamos que nunca será a mesma. Os sinais severos da dor sentida fizeram marcas indeléveis nos corações. O consolo é que mantemos a fé, combustível da vida que pulsa dentro de cada um. Nessa singela homenagem represento seus tios e primos após dois anos de sua partida. “Fique com Deus menina”!
Tia Gê 26/09/2011