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terça-feira, 25 de outubro de 2011

As quatro Marias

          Influenciamos pessoas e por elas somos influenciados. Isso é certo. Na minha longa e nem sempre fácil caminhada, Deus sempre colocou na minha vida pessoas que me deram a mão, o ombro, e que até mesmo me carregaram no colo para que eu pudesse romper as amarras e vencer os enormes obstáculos que surgiram.
          Felizmente, o relógio do tempo se encarregou de mandar para o esquecimento os momentos amargos, facilitando o trabalho do tear incansável da vida e transformando dificuldades em estímulos, colocando no meu caminho pessoas certas nas horas incertas.
          Elencar nomes e feitos seria muito difícil, eu diria mesmo  impossível, tantas foram as pessoas que me ajudaram a elaborar o tecido do convívio, com seus muitos avessos e arremates. Além disso, minha memória já não me é tão fiel e poderia me levar a esquecer algum nome, o que seria profundamente lamentável.
          O que me leva a falar sobre essas pessoas é a coincidência dos nomes nas distintas épocas e as marcas profundas que suas presenças tatuaram em minha alma. Adotei justamente a cronologia de suas presenças para estabelecer a ordem do meu  relato.

1958 –  Maria Crivellini Rasteiro. Rua do Fico, Araçatuba.

         Dona de casa, costureira, estudiosa e profundamente caridosa no sentido exato da palavra. Passávamos horas conversando sobre todos os assuntos, nos cafezinhos com pão e manteiga que nos oferecia nas tardes quentes, algumas vezes sombrias.
         Todo dia atravessava vagarosamente seu corpo obeso pela rua que separava nossas casas, para levar um caldo ou um chá para minha mãe, que se encontrava no leito, já em estado terminal, vitimada pelo câncer que lhe corroia as entranhas. Tinha sempre uma palavra amiga ou uma desculpa piedosa quando o assunto era a "doença" que acometia a enferma (câncer inexistia em seu vocabulário). Suas palavras acalentavam nossas almas ainda inocentes, seja pela falta de informação, seja pela nossa tenra idade.
          Minha memória tem ainda nítida a imagem dos últimos minutos de minha mãe. Tão-logo aconteceu o passamento, dona Maria saiu silenciosamente do quarto. Já não se  sentia necessária: havia no humilde quarto muita gente para cuidar de tudo. Levou-nos para sua casa, para nos alimentar o corpo e a alma, com seu carinho e movimentos serenos, vagarosos, mas firmes.
          Nos dias que se sucederam, achava sempre um tempinho entre um trabalho e outro para nos aconselhar, ouvir e amparar. Foi ela também que me  ensinou o verdadeiro sentido da Vida além da Vida; respondeu a todas as minhas indagações e me incentivou nas leituras edificantes, fazendo brotar em mim o interesse pelos assuntos do espírito e, o mais importante,  a encontrar as respostas que norteariam minha vida a partir de então.
          Quando ela fez a mudança de plano, eu já estava longe e o meu adeus foi através da prece que, com certeza, ela recebeu feliz. Ficaram na lembrança seus olhos verdinhos, cigarro ao canto da boca, suas as mãos sempre ocupadas, seja na máquina de costura, seja fazendo os arremates, sentada na varanda de sua casa.  Era sua marca registrada.

1968 – Maria Eudócia de Oliveira. Hospital Santana, Araçatuba.

          Conheci-a casualmente. Aceitei o convite de Antenor para acompanhá-lo em uma visita hospitalar, onde Maria Eudócia havia sido internada para ser submetida a uma cirurgia da vesícula. Não vi dificuldade em fazer aquilo pelo meu irmão, pois o Hospital Santana era próximo à nossa casa, e ele nutria verdadeira adoração pela mãe de seu grande amigo Nildemar. Além do mais, havia já bastante tempo que ele insistia em nos aproximar.
          Naquela visita, instalou-se tal confiança entre nós que aquele momento fez surgir uma sólida amizade. Foi um encontro de almas. Tornamo-nos grandes amigas. Mais que isso: fizemo-nos cúmplices nos planos e nas confidências. E nossa amizade evoluiu para muito além daquele dia.
          Nossos encontros eram constantes. Ela vibrava a cada sucesso meu e de Antenor. E, também, segurava as pontas do meu irmão em seus muitos desentendimentos com nosso pai. Coisas de jovem, completava, que aconteciam também no seu relacionamento com Nildemar.
          Foram infindáveis as horas que passamos juntas. Eu adorava repartir com ela as refeições de aroma agradável e sabor inconfundível da culinária sul-mato-grossense, sua especialidade. Dividíamos as ansiedades, as alegrias, as festas improvisadas. Devo a ela meu ingresso  no Sesi como professora, onde acabei fazendo carreira. Separamo-nos quando ela se juntou aos filhos em São Vicente e eu segui minha vida profissional em São Paulo.
          Quando a visitei no litoral paulista, ela   já viúva e com os filhos casados,  vivia na companhia inseparável da asma com a qual conviveu a vida toda. Foi um bonito encontro, mas de despedida, vim saber depois. Quantas recordações! Ficaram indeléveis as marcas de sua respiração ofegante, as faces sempre molhadas pelas abundantes lágrimas que não economizava, quando abraçava alguém que amava.

1978 – Maria José de Lima Bicudo. Zona Leste, periferia de São Paulo.

          O encontro com essa amiga foi no mínimo tramado pelo destino. Ingressei como professora concursada  na recém-inaugurada EMPG “José Maria Whitaker”, onde ela era diretora.
          Nessa época, os concursos eram raros e as contratações, na maioria das vezes, aconteciam por apadrinhamento. Eu, concursada e já com alguma experiência na administração escolar, fui convidada para fazer parte de  sua equipe administrativa. Era uma troca justa: eu ganhava uma nova oportunidade e, em contrapartida, oferecia a retaguarda que lhe garantia a tranquilidade e a segurança para o sucesso no andamento dos trabalhos.
          Seu jeito de mãezona foi muito importante para mim, perdida naquela imensidão de fim de mundo. Preocupava-se com todos e a todos ajudava, mesmo que isso lhe acarretasse problemas.
          Foi ela quem estimulou a compra de meu primeiro apartamento. Soube que haveria inscrição para financiamento na construção de apartamentos populares em São Bernardo do Campo e não titubeou. Além de me incentivar a iniciativa, dispensou-me do trabalho para que eu tomasse as primeiras providências.
          Não fosse ela eu nem teria tomado conhecimento da oportunidade, pois saía muito cedo para trabalhar e só voltava a casa à noite, o que me deixava alheia a tudo o que não fosse relacionado à escola.  Depois de cinco anos estava eu no meu novo apartamento, muito simples mas aconchegante, num enorme conjunto habitacional.
          Guardo boas lembranças dessa querida amiga. Lembro-me de sua alegria na pronúncia carregado nos erres, denunciando sua origem interiorana. E da dificuldade de seu caminhar,  nas festas tantas que promovíamos na escola, tamanhos eram os joanetes que lhe entrevavam os pés.
          Mantemos contato até hoje e ainda acompanho, à distância, seus trabalhos voluntários e suas rezas, superando heroicamente as dificuldades que lhe impõem seus oitenta anos.

1988 – Maria Aparecida Ferreira Rosa. São Paulo

          Pequena estatura, peso um pouco acima da média, passos leves e rápidos,  cabelos cinza-gris sempre muito bem arrumados, olhos e ouvidos sempre atentos a tudo. Assim se apresentava dona Cida quando dirigia com pulso firme, mas tranquilo, os trabalhos da EMPG “Profº  Leão Machado” na Regional do Ipiranga em São Paulo.
          Chegamos a essa escola por remoção e praticamente juntas. E nos afinamos desde o primeiro momento. Eu diria mesmo que foi amor a primeira vista, tamanha era nossa identificação nas idéias e nos métodos de trabalho. Oficialmente sua auxiliar, nossa relação ultrapassava os limites do meramente profissional. Éramos amigas e, como tal, realizávamos um lindo trabalho. Trabalhar sob seu comando foi para mim um grande e prazeroso aprendizado. 
          Ela não se intimidava, nem  com as ameaças vindas de alguns alunos orquestrados por lideranças acostumadas ao descaso com a escola pública, nem com exigências descabidas de alguns servidores. Com muita competência e paciência de monge  mostrou a que veio e em menos de um ano a escola já tinha a “sua cara”. Respeitada e respeitadora, conquistou a simpatia incondicional de todos deixando sua marca registrada na escola e nos corações das pessoas. Na festa que fizemos em homenagem à sua aposentadoria, choramos todos.
          Os 32 anos que dediquei ao magistério foram todos de amor e carinho pela profissão que abracei. Mas o período em que convivi com Da. Cida foi muito especial. Tanto que busquei também minha aposentadoria pouco tempo depois. Já não via mais qualquer sentido em continuar com gestões tão diferentes e em desacordo com o meu ideal de trabalho.
          Guardo em meus arquivos da memória a imagem daquela querida mulher que tanto me ensinou. Felizmente, ainda mantemos contato, mesmo que virtual. Também ela, como eu,  participa ativamente dos trabalhos da Faculdade da Terceira Idade. E também ela, como eu, está sempre presente na vida de seus familiares.
A vocês, Marias, meu carinho e eterna  gratidão.
Geni. 08/2011




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