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terça-feira, 30 de setembro de 2014

MEMÓRIA COLETIVA - ELIS REGINA

Manhã do dia 19 de janeiro. Ano 1982. A hora? Nem me lembro. Calor sufocante, nuvens escuras e densas povoam os céus anunciando chuvaradas de verão. O velho fusca percorre a Avenida dos Estados. A voz empostada do locutor anuncia sem convicção: “Morre Elis Regina”. O suor se mistura às lágrimas que escorrem abundantes. Não pode ser verdade. Parecendo conectado ao piloto, o carro segue. Sem dar conta, chego a casa e ligo imediatamente a TV. Informações controversas, declarações emocionadas e confusas, contestações sobre a causa da morte. Tudo isso não importa. Os exames não deixam dúvida: overdose. Aos 36 anos, nos deixa a maior intérprete de todos os tempos. Pimentinha, como era chamada pela sua estatura e seu comportamento irrequieto.

“Chorei, chorei muito até ficar com dó de mim” como diz a canção. Senti-me traída, ela não tinha esse direito. Ir embora justamente quando tantas barreiras haviam sido vencidas, quando era reconhecidamente a musa da nossa música nos vários gêneros, do rock ao jazz, passando pelo samba e, principalmente, pela MPB. Na cidade efervescente de São Paulo realizou seus planos artísticos. Interpretando canções, registrou momentos de felicidade, amor, tristeza, patriotismo. E denunciou a ditadura militar que se instalara no país, como em “muita patrulha, muita bagunça a coisa tá ficando ruça...”, ou em ”Quero lhe contar o que eu vivi e tudo o que aconteceu comigo...”.

Elis era assim: agitada, glamorosa, irrequieta como a cidade. Nos espetáculos de que participava, sua voz perfeita e inconfundível irradiava emoções contraditórias de melancolia e felicidade (“Vou buscar a geleira azul da solidão...”,    ”Meu coração tropical tá coberto de neve...”). Lançou autores desconhecidos e divulgou suas obras, impulsionando-os no cenário musical brasileiro (“Ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida...”). Deu roupagens novas para músicas antigas (“Táubua de tiro ao Álvaro...”). Enfim, tudo o que gravava era sucesso. Mesmo vivendo numa época difícil, com uma censura implacável.

Com minhas amigas da pensão, cantava até alta madrugada, refletindo sobre o significado das canções que ela interpretava e discutindo o pesado momento.  Arriscávamos as vozes aos acordes do violão dedilhado por uma das garotas: “Você vive o faz de conta, diz que é de mentira, brinca até cair... E você se escondeu...”. ”... Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta...”.

Em “Falso Brilhante”, um dos mais lindos espetáculos que vi, tenho a linda lembrança  de Elis no balanço florido, riso fácil, voz limpa, saracutieira como sempre. Em “saudades do Brasil”, um de seus últimos espetáculos, eu acompanhava a grande roda formada no palco pelos músicos e bailarinos. A pequenina e espevitada Elis desaparecia no grupo. E cantávamos...” como se fora a brincadeira de roda, magia,  o suor da vida no calor de irmãos...“

De repente, nossa mente se vê anuviada por essa borrasca. A melhor intérprete do Brasil deixa sua “cadeira vazia”,  “pra dizer adeus”.

Hoje, 32 anos depois, o Brasil lamenta essa ausência que não foi e jamais será esquecida porque como diz a canção “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não...”. Suas interpretações estão gravadas como “tatuagem”, porque  “...possuímos a mania de ter fé na vida”. 

Geni  29/09/2014



( “ ) palavras ou frases das canções interpretadas por Elis



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