Manhã do dia 19 de janeiro. Ano 1982. A hora? Nem me lembro. Calor
sufocante, nuvens escuras e densas povoam os céus anunciando chuvaradas de
verão. O velho fusca percorre a Avenida dos Estados. A voz empostada do locutor
anuncia sem convicção: “Morre Elis Regina”. O suor se mistura às lágrimas que
escorrem abundantes. Não pode ser verdade. Parecendo conectado ao piloto, o
carro segue. Sem dar conta, chego a casa e ligo imediatamente a TV. Informações
controversas, declarações emocionadas e confusas, contestações sobre a causa da
morte. Tudo isso não importa. Os exames não deixam dúvida: overdose. Aos 36
anos, nos deixa a maior intérprete de todos os tempos. Pimentinha, como era
chamada pela sua estatura e seu comportamento irrequieto.
“Chorei,
chorei muito até ficar com dó de mim” como diz a canção. Senti-me traída, ela
não tinha esse direito. Ir embora justamente quando tantas barreiras haviam
sido vencidas, quando era reconhecidamente a musa da nossa música nos vários
gêneros, do rock ao jazz, passando pelo samba e, principalmente, pela MPB. Na
cidade efervescente de São Paulo realizou seus planos artísticos. Interpretando
canções, registrou momentos de felicidade, amor, tristeza, patriotismo. E
denunciou a ditadura militar que se instalara no país, como em “muita patrulha,
muita bagunça a coisa tá ficando ruça...”, ou em ”Quero lhe contar o que eu
vivi e tudo o que aconteceu comigo...”.
Elis era
assim: agitada, glamorosa, irrequieta como a cidade. Nos espetáculos de que
participava, sua voz perfeita e inconfundível irradiava emoções contraditórias
de melancolia e felicidade (“Vou buscar a geleira azul da solidão...”, ”Meu coração tropical tá coberto de neve...”).
Lançou autores desconhecidos e divulgou suas obras, impulsionando-os no cenário
musical brasileiro (“Ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida...”).
Deu roupagens novas para músicas antigas (“Táubua de tiro ao Álvaro...”). Enfim,
tudo o que gravava era sucesso. Mesmo vivendo numa época difícil, com uma censura
implacável.
Com minhas amigas
da pensão, cantava até alta madrugada, refletindo sobre o significado das
canções que ela interpretava e discutindo o pesado momento. Arriscávamos as vozes aos acordes do violão
dedilhado por uma das garotas: “Você vive o faz de conta, diz que é de mentira,
brinca até cair... E você se escondeu...”. ”... Uma mulher que merece viver e
amar como outra qualquer do planeta...”.
Em “Falso
Brilhante”, um dos mais lindos espetáculos que vi, tenho a linda lembrança de Elis no balanço florido, riso fácil, voz
limpa, saracutieira como sempre. Em “saudades do Brasil”, um de seus últimos
espetáculos, eu acompanhava a grande roda formada no palco pelos músicos e
bailarinos. A pequenina e espevitada Elis desaparecia no grupo. E cantávamos...”
como se fora a brincadeira de roda, magia,
o suor da vida no calor de irmãos...“
De repente,
nossa mente se vê anuviada por essa borrasca. A melhor intérprete do Brasil
deixa sua “cadeira vazia”, “pra dizer
adeus”.
Hoje, 32
anos depois, o Brasil lamenta essa ausência que não foi e jamais será esquecida
porque como diz a canção “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não...”.
Suas interpretações estão gravadas como “tatuagem”, porque “...possuímos a mania de ter fé na vida”.
Geni 29/09/2014
( “ ) palavras ou frases das canções interpretadas por Elis
Magnífico texto!
ResponderExcluirParabéns Gê!
Bj
Assim como você posso dizer que ela marcou muito a minha vida com suas maravilhosas interpretações. Lindo texto Ge.
ResponderExcluirChique!
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