Criatividade e pesquisa eram
características de Kiko, um garotinho de olhos grandes e cabelos espetados cor
de fogo. Na escola se destacava pelas ideias mirabolantes, que repartia com os
amigos numa doce alegria. Quando a empreita era mais arrojada, geralmente solicitava
o auxílio do pai, porque tinha noção do perigo. Foi numa dessas pesquisas que
tudo aconteceu.
Kiko teria que fazer um trabalho
sobre insetos e outros animaizinhos nem sempre dóceis que habitam as matas:
aranhas, cobras e lagartos. Não muito longe de sua casa havia um capão de mato,
que não raro procurava para suas aventuras. E para lá foi Kiko, caderno e lápis
à mão e o pai a tiracolo.
Em alguma árvore próxima um
passarinho cantava. Uma anotação aqui, outra acolá, enlevados ambos pela doce
melodia da natureza, mergulharam na mata e no doce trabalho da pesquisa. Kiko
contava ao pai as histórias que lera sobre os seres nem animais nem humanos que
eram donos desses lugares, e ambos se divertiam entre as anotações e risos.
Quando perceberam, a luz do pôr do sol já emoldurava as árvores. Caía a noite.
Podia-se já observar ao longe as luzes da cidade piscando, dando impressão de
constante movimento. Concordaram que já havia passado da hora de voltar.
Juntaram suas tralhas e empreenderam
a jornada. Sem se darem conta, andavam, andavam e voltavam sempre ao mesmo
lugar. O tempo passava e a escuridão tomava conta de tudo. Somente a luz de uma
minúscula lanterna os guiava. O medo começou tomar conta de ambos, embora o pai
procurasse disfarçar.
Foi quando o velho lembrou-se de uma
história que seu bisavô havia contado ao seu avô, que contara para ele que, não
acreditando, não passara adiante. Sua fé não foi capaz de sustentar o peso de
seu temor. Era uma ideia absurda, achava, mas nesse momento começou a tomar
asas em sua mente, voando como uma pipa ao sabor do vento.
Exaustos, sentaram-se numa pedra
cheia de limo e Kiko atento ouvia a narrativa do pai que, ansioso e com a voz
rouca de emoção, discorreu sobre o que ouvira quando garoto.
Era uma vila minúscula, onde todos se
conheciam. Não muito distante ficava o pequeno cemitério. Naquele tempo, era
comum todo povoado acompanhar a pé seus defuntos até à última morada. Covas pequenas,
com algumas pedras ao redor. As cruzes, enfileiradas com suas plaquetas a
identificar o “morador”, assumiam aspecto macabro ao entardecer. Aí começa a
história, que o bisavô contava cheio de pavor.
Numa certa noite, voltava ele de um
baile sozinho, como sempre cortando caminho pela rua que margeava o cemitério.
Com a coragem potencializada pelo álcool, passou a bisbilhotar o lugar,
tentando distinguir alguma coisa na escuridão. Foi quando viu um caboclinho de
tranças, olhos vermelhos e camisolão pulando de uma cruz a outra, como numa
brincadeira de amarelinha. Não deu outra. Irritado com o desrespeito com os
mortos, passou a gritar com o garoto.
— Desça já daí, vá embora, garoto
atrevido.
O menino sorria e continuava suas acrobacias,
sem dar ouvidos. De repente, desapareceu, como num passe de mágica. Com a
coragem fraquejada, o bisavô desatou a correr. Mas, que nada! Rodava, rodava e
não saía do lugar. E assim continuou durante toda a madrugada, até que o céu de
um cinza azulado antecipava a chegada do amanhecer.
Foi quando saiu daquele torpor e
conseguiu retornar. Mas as imagens não lhe saíam da cabeça. Aquele não era um
garoto real, era uma assombração... ou um anjo! Por via das dúvidas, resolveu
mandar rezar uma missa, fez uma novena. Segundo ele, o medo se convertera em
fé. Toda vez que se encontrava perdido, chamava pelo menino das cruzes e seu
pedido era atendido.
Kiko e o pai se entreolharam,
deram-se as mãos e oraram com fervor ao caboclinho das cruzes. Como que uma luz
surgiu de repente. A fé os guiava e eles retornaram com tranquilidade. E
perceberam que a saída era logo ali, muito próximo deles.
A história não parou por aí. Kiko era
um pesquisador nato e, em agradecimento, resolveu saber a história desse menino
enigmático.
Nada encontrando na biblioteca, resolveu
empreender a jornada de repórter investigativo. Soube de idosos que eles também
ouviram de seus pais a história fantástica do caboclinho das cruzes. Um menino
muito pobre que vivia com sua mãe numa mansarda distante, quase no meio da mata
próxima de um rio. Eram felizes e sobreviviam do plantio. As poucas sobras eram
vendidas para comprar as roupas que cobriam seus corpos esquálidos.
Numa noite de grande tempestade, o
pequeno rio transbordou, alagando o casebre que não resistiu e sucumbiu com a
força das águas. O olhos apavorados do menino assistiram a correnteza levar sua
mãe, sem nada poder fazer.
Sozinho, o menino passou a viver da
misericórdia do povo do lugar. Seu passatempo favorito era visitar o cemitério,
procurando uma cruz com o nome de sua mãe. Pesquisa inútil, pois o corpo nunca
fora encontrado. Desde então, o lugar passou a ser preferido para suas
brincadeiras: contava as cruzes, arrumava as que caíam, colocava flores que
recolhia pela cidade. Um dia foi
encontrado sem vida junto ao portão do Campo Santo. Morto para a miserável vida,
mas muito vivo como anjo, continuou visitando seu lugar favorito. Ajudava os
perdidos, mas ai daquele que ousasse afrontá-lo, pois teriam o castigo merecido:
ficavam pedidos.
Kiko gostou do
que ouviu, achou fantástica a narrativa e, temendo que se perdesse no tempo,
resolveu transformá-la em livro, para que as gerações futuras tivessem
conhecimento dessa história tão rica e tão cheia de emoção.
Verdade? Fantasia? Crença? Não
importa. O que vale são as emoções que desperta e a criatividade que desenvolve
nos leitores.
Geni 16-06-2014
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