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terça-feira, 30 de agosto de 2011

Um casamento diferente.


Maristela e Silvio

Amanhecia a segunda-feira dia 5 de outubro de 1969. Eu estava acordada desde a madrugada, na expectativa da chegada do ilustre casal, em retorno de uma lua de mel que não houve, tão curto era tempo para tão grandes emoções.  Ao ouvir o leve toque do portão, abri a porta e a vi: uma mulher jovem ainda, pouco mais velha que eu, com uma blusa xadrez verde, calça de cotelê marrom, com olhar desconfiado. Ele, não me lembro da roupa, mas do olhar, também de interrogação diante da situação no mínimo inusitada.
Meu pai – Sílvio – havia se casado com Maristela. E pensar que nós não a conhecíamos dez dias antes. Tampouco ele. Parece um conto de fadas, e talvez seja mesmo, se conhecermos os fatos.
Bem... o começo de tudo.
Maristela, nascida em Senador Pompeu, no Ceará, morava na capital do estado e trabalhava numa confecção na praça Castro Alves, no centro da cidade. Nessa empresa, entre os vários jornais que chegavam de São Paulo, havia o “Notícias Populares”. Uma amiga sua lia  curiosamente os classificados e deparou-se com um anúncio.
O anúncio: senhor viúvo, 54 anos, pedreiro e músico, deseja corresponder-se com moças mais velhas, solteiras, para sérios compromissos.
Incentivada pela amiga (diz ela) enviou a primeira carta em que se mostrava interessada no namoro. Ele recebeu várias outras cartas, todas de moças casadoiras interessadas e que moravam muito mais próximo de Araçatuba. Mas foi ela a escolhida, coisas do destino.
Durante quase um ano e meio trocaram correspondências. Eu recolhia as cartas e as deixava em seu quarto sem jamais perguntar, mesmo porque acho que ele ficaria sem graça. Um dia, enfim, ele resolveu falar-me sobre a namorada, acrescentando que pretendia casar-se novamente. Ao conteúdo das cartas nunca tive acesso, porque uma coisa na minha casa sempre foi muito séria: violar a correspondência do outro era coisa inadmissível, e nem eu queria fazer isso. Nessa época, três dos seus seis filhos já estavam fora, somente Antenor, Nair e eu ainda estávamos com ele.
Quanto ao casamento, dei a maior força. Até porque, como já relatei em outros textos, a morte de minha mãe deixou-me com muitas responsabilidades, e queria sair da cidade, ter minha própria vida, estudar, trabalhar. Entretanto, para que o enlace finalmente acontecesse, foi um fuzuê, como diz Maristela, a começar pelos preparativos. Primeiro, ele não contou a ninguém, exceto aos mais próximos; segundo, o dinheiro era curto e a experiência em viagem era quase nula. Mas ele venceu todas as barreiras, por maiores que elas parecessem.
Com o maior cuidado organizei sua mala com as melhores roupas. Combinamos tudo: ele deveria fazer contato quando lá chegasse e dizer a respeito de nossa preocupação maior: se havia dado certo, pois ambos haviam combinado que qualquer um dois poderia desistir do compromisso se o encontro não fosse legal, se não houvesse “liga”. No dia 28 de setembro, dia do meu aniversário, recebi um telegrama que dizia, além dos cumprimentos pela data: chegarei dia 5, acompanhado. Havia dado liga, portanto.
O encontro: segundo relato dela (meu pai sempre manteve silêncio sobre o assunto), eles se encontraram na praça Castro Alves, num ponto de ônibus. Era hora do almoço e ela até então havia mantido segredo a respeito da chegada dele. Após se acertarem, ele retornou ao hotel para, no dia seguinte, encontrarem-se novamente, já então com a anuência de todos da família.
Hospedou-se na casa dela (um seu irmão foi buscar o noivo no hotel, de mala e cuia) onde oficializou o pedido para a mãe, em presença dos demais familiares. Já na segunda-feira acertaram os papéis do casamento.
Um fato: na segunda-feira, Maristela compareceu ao trabalho para formular o pedido de dispensa do serviço; o noivo foi com a futura sogra, mais um irmão e um tio da noiva, ao Fórum local, onde normalmente acontecem os casamentos com dispensa de proclamas.
Outro fato: a Igreja não aceitou o simples atestado de óbito para comprovar a viuvez. Recusou-se fazer o casamento, a menos que se pudesse verificar a veracidade do documento.
O impasse: católica como era, a família não aceitava  dispensar a cerimônia religiosa. E o tempo era curto.
A saída: simularam um passeio de táxi, visitaram um tio e retornaram “casados” diante de Deus. Era dia 30 de setembro, uma quarta-feira. No dia seguinte, pegaram o ônibus com destino a São Paulo, em seguida, para Araçatuba.
O casamento religioso só aconteceu no dia 14 de outubro, na igrejinha São Benedito, perto de nossa casa. Era uma quarta-feira, onze horas da manhã. Estavam presentes somente meu pai e Maristela (os noivos), Antenor e eu, seus padrinhos. Em um bonito discurso, o padre que realizou a celebração nos disse ter sido aquele o casamento mais bonito que ele havia realizado. O sonho de todos foi concretizado. Mas certamente Deus já havia abençoado a união há muito tempo.
Para ele, o recomeço; para ela, o início de uma vida totalmente diferente da que tivera até então. Longe da família, sem as facilidades dos meios de comunicação e de transporte de hoje.
Quando falamos sobre isso, nos lembramos do quanto ambos foram corajosos, ao darem um passo tão diferente em suas vidas. Adaptação lenta e progressiva de ambas as partes. Todos colaboraram e as arestas foram sendo aparadas. Para Maristela, a saudade de casa era muita e tantas eram as dificuldades, que poucas vezes retornou para visitar a família. O contato era feito por meio das cartas. Ah! As cartas...
Dois meses depois ela engravidou. Ficamos contentes e curtimos muito a chegada de uma criança depois de tanto tempo. Cuidamos do enxoval, éramos três mães: além de Maristela, Nair e eu nos envolvemos com o nascimento de um lindo menino de cabelos loiros encaracolados.
O parto aconteceu a 18 de agosto de 1970. Ainda convalescendo no hospital, Maristela contraiu infecção hospitalar, o que a deixou internada ainda por 40 dias. As inexperientes “mães” assumiram o papel, desajeitadas às voltas com fraldas e mamadeiras durante os quatro primeiros meses pós-parto.
Como “mães”, Nair e eu nos vingamos do “indo”, marca registrada nos nomes da família. Escolhemos Sílvio (como nosso pai) para o registro do garoto. Mas o velho, que sempre gostou de nome composto, registrou-o como Sílvio César Alves Bizzo, para nós, Silvinho. Os padrinhos? Nair e Antenor é claro. A vida continuou, eu fui para a capital e Antenor para Cuiabá. Nair, nos preparativos para o casamento que se avizinhava, trazia sempre a tiracolo o garoto. Esse elo entre os dois, que se mantém firme até hoje, estendeu-se ao Hirata com quem Nair se casou.
Aos 14 anos, Silvinho, por indicação de seu padrinho Antenor, ingressou como menor aprendiz no Banco do Brasil, onde permanece até hoje, depois de aprovado em concurso público. Maristela emprenhou-se muito na formação do filho e, mesmo com as dificuldades de sempre, não mediu esforços para que ele tivesse um ensino melhor. A faculdade ele cursou em Cuiabá, para onde foi transferido a serviço do banco.
Sílvio hoje mora na capital federal, é pai de três lindas filhas: as duas mais velhas do casamento com Kiti, Bárbara e Beatriz e a caçula Giovanna de seu casamento com Tati. A primogênita já cursa faculdade.
Maristela e meu pai continuaram a vida em Araçatuba. Por incentivo dela, ele, após deixar a indústria onde trabalhava, continuou a recolher a contribuição para o INSS, o que lhe valeu uma aposentadoria pequena, mas que lhe garantiu certa tranquilidade.
Durante os 31 anos em que estiveram casados, muitos altos e baixos aconteceram, dificuldades e tropeços, alegrias e vitórias como em qualquer família (coisas que já comentei em outros textos). Durante os anos em que meu pai esteve doente, ela foi muito dedicada, tomando para a si a responsabilidade com os cuidados. Cabiam a nós, seus filhos, o amparo material e o carinho das frequentes visitas.
 Maristela nunca arredou pé de sua condição e do dever de esposa. Analisando hoje, temos a certeza de que o saldo foi muito positivo, mesmo com os muitos “frises”, como dizia a cearense arretada, que aconteciam no convívio com um velho ranzinza. Afinal, tudo deu certo, foi um trabalho lento de construção e paciência. Ela ainda fala com muito orgulho do seu garanhão e de suas qualidades, além dos defeitos, é claro.
Maristela vive hoje em Rio Claro, sozinha em sua casa. Mas não solitária; pelo contrário, engajada que é nos trabalhos da igreja e na ginástica. E convive harmoniosamente com todos da família de seu marido, hoje e mais do que nunca também dela. Livre, leve e solta, viaja sempre para sua terra natal e para a capital federal curtir seu filho e netas. Está com saúde e muito bem fisicamente. Elegante em bem vestida, deixaria meu pai enciumado, possessivo que era o véio Bizzo, segundo ela.
Muitas pessoas me pedem para contar essa história porque, na verdade, é diferente e interessante. Não sei se falei tudo, mas uma coisa é certa: fui fiel ao que ouvi e, principalmente ao que vivi como coadjuvante.     

25-04-2011 Geni



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