Conto - O último presente
Sala de culto silenciosa. Um caixão sem velas, sem flores e
sem choro. Alguns iguais, acompanhados
de funcionários da casa, observam indiferentes a chegada de uma conhecida
senhora.
Acompanhada de um casal, ela coloca sobre as mãos do defunto
um chapéu e faz silenciosa oração. Um filme da rotina de alguns dos últimos anos
passa rapidamente em sua memória afetiva.
Casa de Repouso Abílio Mendes, instituição metodista
destinada a receber idosos com variados problemas, cultivava uma horta e, ao
longo, mesinhas de cimento sob árvores frutíferas acomodam os internos à espera
de suas visitas.
A distância era grande e agravava as dificuldades, mas a
presença dos três visitantes era religiosa, tanto nos feriados como nas férias.
Paulo, andar trôpego, ombros curvados e boca retorcida, se
apressava em encontrá-los: a alma de criança ansiava pelos presentes que
certamente viriam. Embora de difícil compreensão por estranhos, a fala
registrava claramente sua alegria pelas visitas – e principalmente pelos
presentes.
Ninguém sabia se o mal o acompanhava desde o nascimento, ou se
o teria acometido ao longo da vida; se algum tratamento teria sido possível, se
uma escola adequada pudesse ter amenizado seus problemas. O que se sabia com
certeza é que ele estava ali, mantido pela aposentadoria conquistada no
trabalho sob o sol quente da roça, malgradas suas deficiências.
Adorava presentes, e sempre pedia os mesmos: rádio de pilha e
relógio de pulso. O rádio, cuidadosamente escondido dos colegas debaixo do
colchão da cama, tinha vida curta: mergulhava-o na água à primeira dificuldade
de recepção, ou o jogava fora quando acabavam as pilhas. O relógio não podia
ser digital, porque não tinha ponteiros, elemento imprescindível, segundo ele.
Tanto que, certa feita, assim que abriu o pacote, fez cara de desagrado e o deu
de presente a um amigo porque, embora muito bonito, não tinha os tais ponteiros. E assim era sempre: os mesmos
presentes que, segundo ele, invariavelmente tinham algum defeito.
Certa feita, influenciado por um amigo mais esperto e chegado
a dar palpites, fez um pedido diferente. Desta vez, queria um chapéu. Mas não
qualquer um: tinha que ser Ramenzoni, chapéu de feltro usado por pessoas em
melhores condições financeiras.
Pedido feito, pedido anotado. E mais: as visitas que
aconteciam por ocasião dos aniversários de Paulo se transformavam em eventos
especiais, com direito a bolo, refrigerante, balões coloridos, festas que
agregavam os habitantes da casa, se não todos, pelo menos aqueles que reuniam
condições de participar. Assim, o presente ficou prometido para seu próximo
aniversário.
A busca pelo presente revelou duas verdades: sim, o chapéu
era muito bonito e, sim, seu preço situava-se vários degraus acima do patamar
normalmente admitido para tais mimos. Porém, a antevisão da carinha de
satisfação e o brilho no olhar ao exibir seu rico presente compensava qualquer
sacrifício.
Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino... Paulo
não aguentou esperar. Foi embora da maneira que sempre vivera: simples, sem mágoas,
sem dores sem saudades. Quis o destino que seu último presente não tivesse a serventia
usual. Paulo levou-o nas mãos pálidas, certamente para saudar os que o
antecederam na grande viagem.
Com a certeza de que a missão fora cumprida e após algumas
lágrimas, as visitas foram embora. Felizes, porque, de certa forma, também o
fizeram feliz.
Geni 02/2017
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