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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Conto - O último presente

Conto - O último presente


Sala de culto silenciosa. Um caixão sem velas, sem flores e sem choro.  Alguns iguais, acompanhados de funcionários da casa, observam indiferentes a chegada de uma conhecida senhora.
Acompanhada de um casal, ela coloca sobre as mãos do defunto um chapéu e faz silenciosa oração. Um filme da rotina de alguns dos últimos anos passa rapidamente em sua memória afetiva.
Casa de Repouso Abílio Mendes, instituição metodista destinada a receber idosos com variados problemas, cultivava uma horta e, ao longo, mesinhas de cimento sob árvores frutíferas acomodam os internos à espera de suas visitas.
A distância era grande e agravava as dificuldades, mas a presença dos três visitantes era religiosa, tanto nos feriados como nas férias.
Paulo, andar trôpego, ombros curvados e boca retorcida, se apressava em encontrá-los: a alma de criança ansiava pelos presentes que certamente viriam. Embora de difícil compreensão por estranhos, a fala registrava claramente sua alegria pelas visitas – e principalmente pelos presentes.
Ninguém sabia se o mal o acompanhava desde o nascimento, ou se o teria acometido ao longo da vida; se algum tratamento teria sido possível, se uma escola adequada pudesse ter amenizado seus problemas. O que se sabia com certeza é que ele estava ali, mantido pela aposentadoria conquistada no trabalho sob o sol quente da roça, malgradas suas deficiências.
Adorava presentes, e sempre pedia os mesmos: rádio de pilha e relógio de pulso. O rádio, cuidadosamente escondido dos colegas debaixo do colchão da cama, tinha vida curta: mergulhava-o na água à primeira dificuldade de recepção, ou o jogava fora quando acabavam as pilhas. O relógio não podia ser digital, porque não tinha ponteiros, elemento imprescindível, segundo ele. Tanto que, certa feita, assim que abriu o pacote, fez cara de desagrado e o deu de presente a um amigo porque, embora muito bonito, não tinha  os tais ponteiros. E assim era sempre: os mesmos presentes que, segundo ele, invariavelmente tinham algum defeito.
Certa feita, influenciado por um amigo mais esperto e chegado a dar palpites, fez um pedido diferente. Desta vez, queria um chapéu. Mas não qualquer um: tinha que ser Ramenzoni, chapéu de feltro usado por pessoas em melhores condições financeiras.
Pedido feito, pedido anotado. E mais: as visitas que aconteciam por ocasião dos aniversários de Paulo se transformavam em eventos especiais, com direito a bolo, refrigerante, balões coloridos, festas que agregavam os habitantes da casa, se não todos, pelo menos aqueles que reuniam condições de participar. Assim, o presente ficou prometido para seu próximo aniversário.
A busca pelo presente revelou duas verdades: sim, o chapéu era muito bonito e, sim, seu preço situava-se vários degraus acima do patamar normalmente admitido para tais mimos. Porém, a antevisão da carinha de satisfação e o brilho no olhar ao exibir seu rico presente compensava qualquer sacrifício.
Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino... Paulo não aguentou esperar. Foi embora da maneira que sempre vivera: simples, sem mágoas, sem dores sem saudades. Quis o destino que seu último presente não tivesse a serventia usual. Paulo levou-o nas mãos pálidas, certamente para saudar os que o antecederam na grande viagem.
Com a certeza de que a missão fora cumprida e após algumas lágrimas, as visitas foram embora. Felizes, porque, de certa forma, também o fizeram feliz.

Geni 02/2017




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